Um Brasil urbano e antifrágil
Infraestrutura urbana robusta e rígida não é o suficiente. Medidas proativas de gerenciamento das consequências de eventos extremos são necessárias para preparar as cidades brasileiras para as mudanças climáticas.
A medida da Prefeitura de São Paulo vai na contramão de tudo que uma gestão eficiente da mobilidade urbana e dos espaços públicos deveria ser.
12 de maio de 2025O Elevado Presidente João Goulart, mais conhecido como Minhocão, é um viaduto construído em 1971 no centro de São Paulo para melhorar a fluidez do trânsito de automóveis na região. A obra de quase 3 km de extensão refletia o pensamento rodoviarista da época, presente até hoje em decisões de planejamento urbano. Ao longo dos anos, o Minhocão cultivou uma enorme lista de problemas como barulho e poluição, além de ser um rasgo no tecido urbano, criando espaços residuais ociosos. Seu futuro ainda é incerto, e são discutidas possibilidades de demolição ou de transformação definitiva da estrutura em um parque linear.
Uma das consequências geradas pelo Elevado é a deterioração da área que fica embaixo dele. Esse espaço, que pela sua própria configuração já é inseguro e pouco atrativo para a passagem e a permanência de pessoas, ainda faz parte de uma região da cidade que passou por um processo de abandono nos últimos anos e que também sofre com a falta de zeladoria. Atualmente, ele tem sido ocupado por muitas pessoas em situação de rua.
Em abril de 2025, o vice-prefeito de São Paulo, Ricardo Mello Araújo, anunciou o plano de transformar a área embaixo do Minhocão em um estacionamento gratuito. Segundo ele, o maior problema do local, que é a sujeira e o descarte irregular de lixo, poderia ser resolvido com essa ocupação do espaço. Porém, essa medida vai na contramão do que dizem os dados, especialistas e até o próprio Plano Diretor de São Paulo sobre a gestão da mobilidade e a zeladoria dos espaços públicos.
Leia mais: Os danos causados pelos automóveis
A estratégia sugerida pelo vice-prefeito reflete um pensamento muito parecido com o da época em que o viaduto foi construído: a priorização do carro. Vemos os resultados nocivos desse tipo de pensamento ao longo dos anos nos congestionamentos, nas distâncias entre os lugares, nos longos tempos de deslocamento, na negligência com calçadas e ciclovias e na degradação de espaços públicos (como no caso do Minhocão). Ironicamente, a visão do vice-prefeito para a resolução é a mesma visão que um dia gerou o problema.
Não é difícil perceber que o espaço sob o Minhocão não é agradável para se estar ou passar. O motivo que origina isso é a própria estrutura do viaduto, sem elementos de ativação, com um grande movimento de carros ao redor e com pilastras que se tornam muros cegos. O lixo, foco do discurso de quem quer implantar os estacionamentos, na verdade é uma consequência desses problemas. Diante disso, é importante questionar o que de fato a implantação dos estacionamentos poderia oferecer como melhoria.
A experiência de quem caminha debaixo do Minhocão não seria otimizada, em qualquer aspecto, com os estacionamentos. Ela pode até ser mais comprometida, já que os carros estacionados são obstáculos físicos e visuais para o pedestre. Em relação à ciclovia existente na área, o projeto de implantação das vagas propôs que ela fosse redesenhada de uma forma que a visibilidade do ciclista também será dificultada, e a nova movimentação de carros entrando e saindo pode aumentar os riscos de colisão. Além disso, com a sua expansão, o estacionamento será adjacente a um corredor de ônibus existente, podendo atrapalhar o seu fluxo, como aponta o urbanista e vereador Nabil Bonduki.
Evidentemente, a medida não traz nenhuma melhoria para pedestres ou ciclistas, que são os maiores responsáveis pela vitalidade urbana, e nem para os usuários do transporte coletivo. Seu benefício é apenas para os motoristas de automóveis particulares, uma visão contrária ao que o próprio Plano Diretor de São Paulo tem como diretriz em relação à mobilidade.
A ideia de oferecer gratuitamente para o carro um espaço que deveria ser de todos já é prejudicial em vários sentidos, como reforça o especialista no tema, Donald Shoup. E apesar de proporcionar essa vantagem para o motorista, a estratégia da prefeitura pode acabar prejudicando o próprio trânsito, considerando o tempo para manobras e procura por vagas que será acrescentado ao fluxo da via.
Diante da ausência de possíveis benefícios maiores, vemos que a medida do vice-prefeito é fundamentada apenas na intenção de afastar pessoas do local para que elas não descartem lixo irregularmente e degradem a área. Porém, um entendimento lógico repercutido por urbanistas como Jane Jacobs e William H. Whyte é o de que um espaço público vibrante, agradável e consequentemente “bem cuidado” é aquele que atrai pessoas. Isso significa que o caminho para a revitalização de uma área como o Minhocão é fazer com que ela seja mais convidativa para todos, e não tentar torná-la mais hostil.
A Prefeitura de Porto Alegre, por exemplo, partiu dessa premissa para lidar com os vazios embaixo dos seus viadutos. A partir de um projeto de lei inspirado no conteúdo do Caos Planejado que permite a adoção e exploração comercial desses vãos, vários espaços estão sendo revitalizados com a presença de pequenos comércios que tornam a área mais atrativa e segura. Cidades como Buenos Aires e Tóquio também promovem a ocupação de vãos de viadutos dessa forma, com estruturas ainda mais sofisticadas. Apesar dessa não ser necessariamente solução definitiva ou única para os problemas do Minhocão, ela ajuda a pensar alternativas mais voltadas para as pessoas — e não os carros — em uma tentativa de revitalização.
Leia mais: De barreiras a pontos de encontro: a revolução dos vãos de viadutos
Como se não bastassem os equívocos da própria ideia da Prefeitura de São Paulo, a forma como ela está sendo implementada é alarmante. Com menos de 10 dias entre o anúncio do vice-prefeito e o início das obras da fase experimental do projeto, não houve consulta pública ou apresentação de estudos de viabilidade previamente. É uma situação bem diferente dos imbróglios que vemos, por exemplo, na construção da ciclovia da Avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, uma medida que de fato incentiva uma mobilidade mais eficiente. E infelizmente, ela é só um dos muitos casos desse tipo nas cidades brasileiras. A agilidade institucional no Brasil ainda tende a ter um apreço maior pelo carro em detrimento dos outros modais.
Por fim, os erros da medida que está em implementação no Minhocão não passaram despercebidos. Mobilizações de vereadores e diferentes protestos tentam interromper as obras e reverter a situação. Isso acende a esperança de que possamos, com conhecimento e em sociedade, ajudar a impedir escolhas que são nocivas para as nossas cidades.
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