As esquinas por que passei
Como as esquinas, esse elemento urbano com tanto potencial econômico, cultural e paisagístico, podem ter sido ignoradas por tanto tempo pela produção imobiliária em São Paulo? É possível reverter essa situação?
Referência quando o assunto é a criação de vagas para veículos em empreendimentos comerciais e residenciais, e nas ruas, Donald Shoup acredita que os requisitos mínimos de estacionamento são uma barreira para novas habitações e um subsídio para os carros.
30 de novembro de 2022“As exigências de estacionamento estão envenenando nossas localidades com muitas vagas e muitos automóveis”, sentencia o PhD em economia Donald Shoup em artigo para o Planetizen. Especialista no tema, com publicações sobre essa questão desde 1970, ele aponta que a construção de mais espaços para os veículos nas vias públicas e nos complexos comerciais e residenciais influencia as pessoas a utilizarem mais esse meio de locomoção, impactando nos congestionamentos, na emissão de gases de efeito estufa e na qualidade de vida dos indivíduos.
Até mesmo o desenho urbano dos municípios sofre com os reflexos da imposição de requisitos mínimos de estacionamento e da má-precificação das vagas nas ruas. A área ocupada por esses pontos poderia ser, conforme matéria do Vox, melhor aproveitada para a instalação de calçadas, ciclovias e transporte público.
Os efeitos da oferta de mais lugares para os carros nas cidades repercutem ainda no tempo que os motoristas ficam buscando um estacionamento, circulando pelas vias, gastando mais combustível e poluindo o ar. Além disso, essa situação pode elevar o número de acidentes de trânsito, já que os condutores ficam mais distraídos enquanto procuram uma vaga, acrescenta a reportagem.
Para Shoup, rever as normas sobre estacionamentos é a forma mais óbvia e menos debatida para avançar em diferentes setores, como moradia acessível, aquecimento global, igualdade de gênero e racismo sistêmico, como salienta matéria da Bloomberg.
O professor pesquisador do Departamento de Planejamento Urbano da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e engenheiro elétrico de formação defende três medidas simples para tornar as localidades mais justas, acessíveis e sustentáveis por meio da reforma dos espaços para os automóveis.
São elas o fim das exigências mínimas de vagas para novos empreendimentos, precificar os estacionamentos nas ruas de acordo com o valor de mercado — baseando-se nos lugares onde eles ficam, a hora do dia e o número de pontos vazios — e que os recursos arrecadados com isso sejam aplicados em aprimoramentos nos bairros, como, por exemplo, limpeza e Wi-Fi gratuito.
Nascido em Long Beach, na Califórnia, em 1938, Shoup escolheu como assunto para sua tese de doutorado a economia da terra e passou a verificar os usos dados ao solo nos Estados Unidos. Em suas pesquisas, ele apurou que as cidades norte-americanas destinam mais terrenos para os estacionamentos do que para qualquer outra função única, inclusive para a habitação e o comércio.
Os 250 milhões de carros daquele país contam com aproximadamente 2 bilhões de vagas, segundo dados de 2021 da reportagem da Bloomberg. As ideias do professor, que há mais de 50 anos investiga o tema, foram reunidas no livro “The High Cost of Free Parking (O Alto Custo do Estacionamento Grátis)”, lançado em 2005.
Na obra, que o alçou a referência contemporânea em planejamento de espaços para os veículos, Shoup ressalta que toda vaga para automóveis é algo político e que não há estacionamento gratuito. Isso porque, apesar de a maioria dos lugares nas vias não ter parquímetros, há por trás de cada ponto oferecido custos com a aquisição dos terrenos, pavimentação, manutenção e outros serviços que são pagos com os impostos de todos — incluindo aqueles que não possuem carros.
Na perspectiva do pesquisador, as vagas sem cobrança transformaram as regiões centrais dos municípios em contêineres para veículos em vez de locais para o encontro de pessoas, esvaziaram as ruas, tirando a sua vitalidade, e inflacionaram o preço das residências — empurrando uma parcela da população para longe dessas áreas —, complementa Alan Ehrenhalt, editor colaborador da revista Governing, em artigo para a publicação.
Ele recorda também que Shoup argumenta em seu livro que até 30% do espaço do Centro de algumas cidades dos Estados Unidos era ocupado por carros parados. Conforme Alan, o professor encontrou ainda municípios onde havia quatro vagas para cada automóvel.
“Todo mundo paga por esse estacionamento gratuito porque as vagas necessárias aumentam os preços de todo o resto. Um estudo descobriu que o estacionamento em garagem eleva o aluguel de apartamentos em torno de 17%, mesmo que o morador não tenha um veículo”, relatou o próprio Shoup em seu artigo no Planetizen.
Como são determinadas as exigências mínimas para estacionamentos em novas edificações comerciais e residenciais? Donald Shoup enfatiza em seu artigo na Planetizen que, “apesar de toda a sua pretensão científica, elas são essencialmente arbitrárias”.
O pesquisador e também autor da obra “Parking and the City (Estacionamento e a Cidade)”, lançada em 2018 e escrita com outros 45 planejadores acadêmicos e praticantes, exemplifica esse cenário com o caso de San Bruno, na Califórnia (EUA), que demanda quatro vagas para cada 1 mil pés quadrados de área útil (92,9 metros quadrados) em um salão de massagens para adultos. “Esse requisito significa que o estacionamento deve ser pelos menos 30% maior que o próprio negócio. Como os planejadores urbanos sabem disso?”, questiona.
A favor da retirada dessas exigências nas localidades, Shoup observa ainda que os governos federal e estadual destinam aos municípios “bilhões de dólares todos os anos para construir e operar sistemas de transporte coletivo”.
Porém, ao mesmo tempo, a maioria desses lugares estabelece a obrigatoriedade que cada edifício disponibilize vagas fora das ruas, supondo que praticamente todo mundo irá dirigir até os seus destinos. “Os requisitos de estacionamento funcionam contra todos os investimentos em trânsito”, pondera.
Nesse sentido, ele comenta que em Los Angeles, na Califórnia, está sendo erguido um metrô sob a avenida Wilshire Boulevard, que já possui um serviço de ônibus bastante movimentado. Mesmo assim, em alguns trechos desse trajeto, a cidade determina que sejam construídas, pelo menos, 2,5 vagas para carros para cada unidade residencial.
“Isso aumenta o custo dos apartamentos e faz com que os moradores tenham menos interesse em andar no futuro metrô”, destaca Shoup. O professor frisa que as exigências de lugares para os veículos são um obstáculo para novas habitações e um incentivo para a utilização dos automóveis. “Como resultado, a Califórnia tem imóveis caros e estacionamento gratuito. Na prática, o sonho da vaga grátis abundante se transformou em um pesadelo de congestionamento e poluição do ar”, assinala.
A remoção dos requisitos de estacionamento permite que os desenvolvedores imobiliários dimensionem adequadamente a oferta desses espaços, de acordo com as particularidades de cada área, analisa o pesquisador.
“Os americanos adoram seus carros, mas o caso foi um casamento arranjado, com os planejadores municipais como casamenteiros e membros da festa. Infelizmente, ninguém forneceu um bom acordo pré-nupcial. Os planejadores podem se tornar agora conselheiros matrimoniais ou advogados de divórcio”, compara Shoup.
Junto ao fim das exigências de vagas para os veículos, da precificação inteligente, como a realizada em São Francisco, também na Califórnia, e do retorno dos valores arrecadados como melhorias para as comunidades, o PhD em economia sustenta que os empregadores paguem um valor mensal para os funcionários que optem por não usar os estacionamentos disponibilizados pelas empresas.
Em Washington D.C. (EUA) foi aprovada uma lei que define que companhias com 20 ou mais colaboradores adotem essa prática. A iniciativa estimula a utilização do transporte público, das caronas compartilhadas e dos deslocamentos a pé ou de bicicleta.
Essa norma é fundamentada no modelo de “parking cash-out”, criado por Shoup, através do qual a pessoa tem direito a um “saque” por mês que corresponde ao valor de mercado de uma vaga para automóveis nas ruas. Em entrevista para o Streetsblog USA, o pesquisador declarou que essa medida é uma maneira de mostrar que deve ser dado o mesmo benefício que indivíduos que dirigem recebem a quem está sendo deixado de fora nesse momento.
Apesar de estudar os impactos dos estacionamentos desde a década de 1970, as propostas de Donald Shoup ganharam mais visibilidade a partir do final dos anos 1990, quando ele passou a dar aulas na Universidade da Califórnia em Los Angeles e a preparar o seu livro.
Ao apresentar sua visão na pós-graduação, muitos alunos que enxergavam a economia como uma forma de resolver os problemas das cidades começaram a compartilhar suas teorias. O especialista em planejamento urbano possui, hoje, uma legião de fãs, que se identificam como “Shoupistas”, como explica a reportagem da Bloomberg. No Facebook, há um grupo com 5 mil membros, entre ex-estudantes da UCLA, acadêmicos, consultores e funcionários públicos de todo o mundo.
Alguns desses admiradores de Shoup estão adotando suas soluções e alterando legislações de municípios norte-americanos, como Leah Bojo, que trabalha como consultora de uso da terra em Austin, no Texas, e atua com o foco em ações verdes. Ela ajudou a desenvolver o primeiro “Parking Benefit Districts (Distritos de Benefício de Estacionamento, em tradução livre)” da localidade, em 2011, como informa a Bloomberg.
Foram instalados em uma área perto do campus Oeste da Universidade do Texas — onde havia uma movimentação grande de alunos e habitação insuficiente — parquímetros nas vagas para veículos existentes.
Os moradores do bairro puderam escolher os projetos em que seriam aplicados os recursos arrecadados com a cobrança pelo espaço, como financiar ciclovias, faixas para pedestres e outras melhorias. Os resultados positivos, relata a matéria, levaram à expansão do programa, que no momento conta com quatro desses distritos.
Já em Berkeley, na Califórnia, a vereadora e também Shoupista, Lori Droste, elaborou uma proposta para reduzir os custos das residências e as emissões de gases de efeito estufa por meio, principalmente, da retirada da exigência da cidade de que cada casa tivesse um estacionamento.
A iniciativa, que se apoiava na premissa de que acabar com os requisitos para que os desenvolvedores gastassem milhares de dólares para fazer um lugar para deixar os carros liberaria fundos para erguer moradias mais acessíveis e incentivaria o uso do transporte coletivo, ficou em análise na comissão municipal de 2015 até 2021, quando foi aprovada por unanimidade, segundo a reportagem.
Em uma pesquisa efetuada há alguns anos, Shoup estimou que os custos de construção de vagas para automóveis em uma dúzia de localidades norte-americanas eram, em média, de US$ 24 mil por espaço acima do solo e US$ 34 mil abaixo — o que representava aproximadamente de duas a três vezes o patrimônio líquido de uma família média negra ou hispânica.
O professor adiantou na entrevista para a Bloomberg que confia que as pessoas mudaram a percepção que tinham da ocupação das ruas com a pandemia de coronavírus, quando vias foram fechadas para os veículos e abertas para que os habitantes as utilizassem.
“Nas regiões mais densas, como Manhattan ou Brooklyn (Nova York, EUA), os residentes verão que estacionar na calçada não é o uso de maior valor da terra. Eles dirão: bem, caramba, esses cafés no passeio público são ótimos. Antes isso era impensável”, apontou.
Publicado originalmente em Somos Cidades em novembro de 2022.
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