Combatendo o crime sem policiais: o papel fundamental do espaço urbano
Pequenas intervenções preventivas no desenho urbano podem ser mais valiosas do que vários policiais.
No trecho de uma das importantes ciclovias de Belo Horizonte, 98% dos ciclistas abandonam o trajeto proposto, preferindo seguir pelo caminho sem ciclovia.
9 de março de 2022Em julho de 2020, no contexto da pandemia, foi implantada uma rota cicloviária de 30km ligando as regiões Leste e Oeste de Belo Horizonte, aproveitando algumas ciclovias já existentes e adicionando ciclofaixas em novos locais. O projeto foi até premiado, apesar de diversos equívocos de concepção e execução. Uma dessas falhas pode ser agora melhor evidenciada a partir da base de dados do Strava Metro, a qual permitiu analisar o comportamento de ciclistas que registraram suas atividades no aplicativo Strava.
Identificou-se que, num trecho desta ciclovia implantada em 2013 pela empresa de transporte e trânsito de Belo Horizonte (BHTRANS) e posteriormente aproveitada para realizar a interligação de parte da nova rota cicloviária, somente 2% dos ciclistas aderiram ao caminho proposto. Os outros 98% preferiram continuar a seguir o caminho sem ciclovia. O mapa abaixo ilustra os trajetos utilizados e faz uma comparação das principais rotas utilizadas entre a avenida Tereza Cristina e o viaduto Itamar Franco.
O ciclista que percorre a avenida Tereza Cristina em direção ao centro, logo após a rotatória do Coração Eucarístico, pode seguir pela via principal de alta velocidade, com grande fluxo de veículos e sem ciclovia (bordô) ou seguir pela marginal com a ciclofaixa implantada pela BHTRANS (laranja). Neste trecho, identificou-se que 50% dos usuários do Strava optaram por seguir pela ciclofaixa, ainda que o caminho seja 100 metros mais longo (antes da implantação da ciclofaixa, somente 35% escolhiam este caminho). Todavia, na altura da estação Calafate, os ciclistas que pedalaram pela ciclofaixa se deparam com duas novas opções:
1. Seguir pelo caminho proposto pela BHTRANS (roxo), o qual implica em virar na rua Tombos, pegar a avenida Tereza Cristina e pedalar por uma ciclovia em cima da calçada, a qual ainda muda de lado mais à frente.
2. Continuar pela Rua Bimbarra e pela Avenida Nossa Senhora de Fátima, sem ciclovia (amarelo).
Mas, afinal, o que levou 98% daqueles ciclistas que já haviam optado por seguir numa ciclofaixa, a preferirem, neste ponto, seguir pelo trecho sem ciclovia e disputar espaço com os veículos motorizados? (Já entre os que não vieram pela ciclofaixa, 99,8% não acessaram a ciclovia na altura da rua Bom Sucesso).
A tabela abaixo compara algumas características das duas opções de trajetos.
Fica claro que o caminho desenhado pela BHTRANS tem uma série de desvantagens e apenas duas vantagens. De forma resumida, o caminho com ciclovia é mais longo, demorado e desconfortável. Em determinado momento, a ciclovia muda de lado na rua e atravessa dois semáforos dessincronizados, onde o tempo de espera pode passar de 3 minutos. Para piorar, este trajeto é menos arborizado, com condições de pavimentos ruins, possui uma infinidade de entradas de garagens e estacionamentos, bem como vários cruzamentos e esquinas, o que resulta em um tempo de percurso até 3 vezes mais demorado.
Portanto, conclui-se que a melhor opção para dar continuidade à rota cicloviária era simplesmente ter seguido reto. Só que, infelizmente, o órgão responsável não quis tirar o “precioso” espaço dos carros para não melindrar os motoristas e optou por aproveitar a ciclovia mal projetada. Desta forma, os automóveis mantiveram intocadas 4 faixas de carro na pista principal e entre 2 e 3 faixas na via secundária.
Este fato identificado através dos dados do Strava Metro ilustra bem um problema recorrente em torno da mobilidade urbana. Infelizmente, a maioria das cidades brasileiras ainda é refém da lógica equivocada de priorizar o espaço urbano para os automóveis se deslocarem e estacionarem, enquanto pedestres e ciclistas ou são simplesmente ignorados, ou lhes restam caminhos precários, mais longos, sem interligação, com maior aclive, mais demorados, desprovidos de sombreamento e de infraestrutura adequada, etc.
Por conseguinte, infelizmente, ainda é muito comum observar governantes a prometer mitigar os problemas de trânsito, através das tradicionais propostas de alargar vias, construir viadutos ou exigir número mínimo de vagas de garagem. Entretanto, muitos especialistas já reconhecem que estas medidas equivalem a “enxugar gelo”, pois, no fim das contas, acabam por reforçar os problemas que prometem combater. Afinal, a ampliação de espaço das vias destinadas aos automóveis, induz ao aumento do uso deste meio de transporte e menos pessoas escolherão modalidades mais sustentáveis, como a caminhada, a bicicleta e o transporte público.
Artigo publicado originalmente em Observatório da Bicicleta em 28 de fevereiro de 2022.
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