Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
“Além de Rio e Sampa’’, de Jorge Guilherme Francisconi e sôniahelana, é leitura imprescindível para todos os envolvidos no complexo processo de planejar cidades no país.
27 de abril de 2023A compreensão, e não o mero conhecimento, da história do planejamento urbano no Brasil pode contribuir de maneira decisiva para que nossas cidades se tornem, um dia, mais inclusivas, justas e sustentáveis, oferecendo a seus moradores uma vida verdadeiramente digna.
Não é uma trajetória simples de acompanhar. Afinal, foi numa estonteante velocidade que passamos da condição de país predominantemente rural para a de uma das nações mais urbanizados do planeta. Em 1940, só 31% dos brasileiros viviam em cidades; na década de 1970 já eram 56%.
O processo se acelerou em especial a partir dos anos 1950, quando experimentamos um salto na industrialização. Na atualidade, algo em torno de 85% da população do Brasil mora em centros urbanos. Compreender em que circunstâncias enfrentamos isso representa não apenas uma necessidade intelectual como também uma ferramenta indispensável para superar os desafios que tal realidade impõe.
Nesse sentido, Além de Rio e Sampa – Corumbá, Irecê e Parintins, dos arquitetos e urbanistas Jorge Guilherme Francisconi e sôniahelena (Sônia Helena Taveira de Camargo e Cordeiro), constitui um livro imprescindível para todos os envolvidos no complexo processo de planejar as urbes no país, a começar pelos agentes do poder público (o cliente, na maioria dos casos, “de planos de ordenamento territorial e urbano, dos projetos urbanísticos e da gestão de cidades’’, como ressaltam os autores). Embora falem em “vol d’oiseau’’, o que Francisconi e sôniahelena promovem é um mergulho abissal nas águas turvas do planejamento urbano nacional, revelando em detalhes a história vivida — e morada — ao longo de mais de 500 anos.
(Não sem antes lembrarem que a capacidade humana “para estabelecer alternativas e planejar ações futuras foi indicada por Aristóteles”, que cunhou o termo proairest, “hoje um atributo realizado no planejamento e na gestão das cidades”, mas que “para ser aplicado é necessário estabelecer os princípios e fundamentos (archai) a serem adotados para atender às funções e aos objetivos de cada plano”.)
Segundo a dupla, o processo de ocupação do território brasileiro incorporou “o sistema administrativo e o municipalismo português e, durante quase quatro séculos, refletiu os ciclos de economia primária de exportação, com forte intervencionismo do Estado”. Mas as primeiras experiências efetivas de planejamento do espaço urbano surgiriam somente no final do século XIX e início do século XX.
As ideias do funcionalismo moderno, explicam Francisconi e sôniahelena, seria incorporada aos poucos, culminando com o Plano Piloto de Brasília, o maior exemplo da corrente defensora dos princípios do Manifesto Urbanístico do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, realizado na capital da Grécia, em 1933 — a desafiadora Carta de Atenas.
Não por acaso, os autores dedicam um capítulo inteiro à cidade projetada por Lúcio Costa e marcada pela arquitetura de Oscar Niemeyer. No seguinte, tratam da “institucionalização do planejamento urbano a nível federal”, que levaria à criação, em 1964, do Banco Nacional de Habitação (BNH) e do Sistema Federal de Habitação e Urbanismo – SERFHAU.
A obra segue estudando “A institucionalização do planejamento urbano no Brasil”, “O espaço constitucional do plano diretor”, os “Novos marcos regulatórios da política urbana brasileira” (Estatuto da Cidade e Estatuto da Metrópole), para, então, analisar os “Novos desafios para o planejamento e gestão urbana”, fechando o volume com um capítulo dedicado aos “Novos tempos, novos desafios”.
Nele, a dupla de autores conclui: “É preciso definir uma rede urbana mais bem distribuída e equilibrada; adotar as boas práticas do planejamento estratégico e da visão prospectiva para o planejamento e gestão municipal urbana; considerar novas maneiras de se estabelecerem relações funcionais casa-trabalho-escola-comércio-serviços (…); inovar no projeto urbanístico (…); estabelecer novos padrões de qualificação das equipes responsáveis pelo planejamento e gestão municipal e urbana; ampliar e aprimorar a infraestrutura e os serviços urbanos” e “criar espaços adaptáveis a mudanças para seguirem o lócus das trocas socioeconômicas, da convivência, dos encontro e da renovação permanente da sociedade”.
Com uma longa folha de serviços prestados em diversos órgãos e instituições, além de estudos relevantes, Francisconi — colaborador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper — e sôniahelena provocam, ao final da leitura de Além de Rio e Sampa, aquilo que só os arquitetos e urbanistas de credibilidade são capazes: um extraordinário desejo de mudar a realidade adversa com que se esbarra nas ruas da cidade.
Publicado originalmente no Insper em abril de 2023.
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