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Os desafios da política habitacional no Reino Unido
O novo governo do Reino Unido recentemente divulgou uma meta ousada de que 1,5 milhão de novas moradias serão entregues na Inglaterra durante este mandato, porém desafios específicos e globais mostram como a política habitacional é um tema complexo mesmo em economias desenvolvidas.
A crise habitacional no Reino Unido não é um problema recente. Tema recorrente na agenda política do país desde, pelo menos, a metade do século 20, a provisão de habitação já passou por diversas “eras”, como o boom de construção de council housing (moradias públicas construídas e mantidas pelos governos locais) no período pós-Segunda Guerra, seguido pela privatização de boa parte desses e o protagonismo do setor privado que segue até hoje.
Atualmente, considera-se que o Reino Unido passa pela sua maior crise habitacional da era moderna, com 240 mil famílias vivendo em acomodações temporárias consideradas impróprias e mais de 1,5 milhão de famílias nas listas de espera de moradia social. Em 2024, o então recém-eleito Primeiro Ministro Keir Starmer anunciou um plano ousado: entregar 1,5 milhão de novas unidades habitacionais na Inglaterra nos próximos cinco anos, até o fim do atual mandato. A população do país, que era de 67,6 milhões em 2022, deve crescer a 72,5 milhões até 2032 (aumento de 7,3%), incluindo um número significante de 4,9 milhões de novos imigrantes. Assim, faz-se necessária uma política habitacional forte, sobretudo pelo custo – em 2023, em média 34% dos orçamentos familiares eram gastos em aluguel na Inglaterra. Aumentando a oferta, o governo espera não só reduzir o déficit habitacional como também tornar a moradia mais acessível em um contexto de incertezas políticas e econômicas.
Contudo, atingir essa meta não será uma tarefa fácil, e boa parte disso pode ser explicado pelo sistema de planejamento do Reino Unido. Ao contrário do Brasil e da maioria dos países do mundo, onde impera um sistema conhecido como “performativo” – baseado em zoneamento espacial restrito e sem muita flexibilidade quanto às regras construtivas – no Reino Unido (e outros países membros da Commonwealth, principalmente), o sistema “discricionário” possui somente regras gerais estabelecidas, porém poucas delas se aplicam espacialmente. Assim, as aplicações para novas construções (planning applications) são consideradas caso a caso, podendo, por exemplo, sugerir a construção de um prédio residencial em uma zona industrial. Isso faz com que exista maior flexibilidade e espaço para negociação entre as incorporadoras e as autoridades locais, onde cada um defende os seus interesses até chegarem em um denominador comum. Por outro lado, as negociações podem levar anos e atrasar a entrega de novas moradias, enquanto no sistema “tradicional” a construção é, em teoria, aprovada diretamente caso se adeque às regras do zoneamento.
Essas negociações acontecem principalmente com os local councils (autoridades locais), que funcionam de forma similar às prefeituras, porém em geral em unidades menores – Londres possui 33 autoridades locais além da Prefeitura da Grande Londres, que na prática tem poder reduzido sobre a política local das regiões. Entre os termos negociados estão a altura das construções, a provisão de espaços públicos, a manutenção de biodiversidade e a entrega de moradias acessíveis no empreendimento – que são financiadas pelos governos federal ou local, porém reduzem a margem de lucro do empreendimento. Enquanto muitas das autoridades locais buscam maximizar o número de moradias acessíveis (a região de Islington, em Londres, exige um mínimo de 50%, por exemplo), as incorporadoras buscam um número que viabilize financeiramente os empreendimentos e não gere um aumento excessivo no valor das unidades privadas de mercado.
O desafio começa na necessidade de reverter o número de planning applications, que se encontra em uma baixa histórica. De 2023 para 2024, o número de propostas enviadas e aprovadas caiu, respectivamente, 8% e 7%, seguindo uma tendência de queda dos últimos anos.
A própria cultura urbana britânica também é uma barreira: Londres, ao contrário de outras metrópoles globais como Nova York, Hong Kong e Tóquio, é uma cidade de baixas densidades, mesmo em suas regiões centrais. Os cerca de 9 milhões de habitantes da Grande Londres estão espalhados em mais de 1.500 km², o que é refletido por longas distâncias de transporte e uma das mais extensas malhas metroferroviárias do mundo – cerca de 400 km de extensão – atrás somente de grandes cidades chinesas. Além disso, as regiões centrais da capital possuem poucos terrenos vagos, tornando-se uma tarefa difícil encontrar terrenos passíveis de desenvolvimento.
Outro aspecto particular da capital são as chamadas “protected views” – requisitos que devem garantir a vista livre de pontos históricos (como a Catedral de St Paul e o Palácio de Westminster) a partir de localizações espalhadas pela cidade. Isso faz com que alguns dos arranha-céus (que já são poucos para uma cidade do porte de Londres) tenham formatos “curiosos” para se adequarem às regras.
Skyline da City of London, região central da capital britânica. Foto: City of London Corporation
Isso levou o governo a buscar alternativas para a construção de novas moradias em outros espaços. Os green belts (cinturões verdes), áreas no entorno de cidades designadas para a preservação ou agricultura, que também funcionam para barrar a expansão urbana, se tornaram um dos alvos para a construção de novas áreas residenciais. A ideia é a identificação de áreas específicas nos cinturões que não cumpram alguma de suas funções originais (se tornaram conhecidas como grey belts) e assim possam se tornar passíveis de desenvolvimento, sendo que no mínimo 50% dessas novas unidades devem ser moradias acessíveis.
Outras medidas tomadas pelo governo, além de uma discussão nacional sobre o atual modelo de planejamento, são que todos os governos locais devem apresentar um plano de habitação adequado à meta federal e identificar as áreas de grey belt, bem como subsídios para os governos locais acelerarem os processos de tomada de decisão. Ainda assim, a meta de 1,5 milhão é vista com desconfiança pelo setor da construção e especialistas, alegando uma falta de profissionais capacitados e uma força de trabalho envelhecida.
Outro aspecto que tem chamado a atenção é que, apesar do número reduzido de aplicações de planejamento, dados recentes apontam que o problema talvez não seja esse: desde 2015, um terço das moradias aprovadas não foi construído. As razões apontadas pelos construtores são a instabilidade política e econômica, os custos crescentes dos materiais de construção e os requisitos quanto à manutenção de biodiversidade e provisão de moradias acessíveis, considerada a prioridade atual do governo federal no combate à crise habitacional.
Além dos desafios específicos do Reino Unido, outros fatores enfrentados pela maioria das metrópoles europeias – como o crescimento da oferta de aluguel de curta temporada e movimentos organizados contra desenvolvimentos imobiliários (os NIMBY – Not In My Back Yard) – mostram como a habitação é um tema complexo e cheio de nuances, mesmo em economias desenvolvidas.
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