O mito da redução dos tempos de viagem

O mito da redução dos tempos de viagem

A maioria dos projetos de transporte desenvolvidos no século XX priorizou a redução dos tempos de viagem. Curiosamente, estudos históricos mostraram o seu aumento ao longo dos anos, não diminuição, contrariando os objetivos iniciais.

3 de outubro de 2016

“O que aconteceu com todos os ganhos de tempo alegados para justificar a despesa pública em estradas britânicas de cerca de £ 100 bilhões ao longo dos últimos 20 anos?” — David Metz

Em Maio de 2008 o periódico científico Transport Reviews publicou um paper um tanto perturbador que até mereceu uma nota editorial, que alertava para os pontos polêmicos trazidos pelo autor e, também, incentivava respostas pró e contra os argumentos do paper. O autor do paper, David Metz, advogava que, ao longo do século XX, a generalidade dos projetos de transporte focou sempre na redução dos tempos de viagem como benefício principal dentro de uma análise custo-benefício social. Porém, estudando séries históricas fica claro que os tempos de viagem aumentaram ao longo dos anos ao invés de diminuírem. Ou seja, a construção de infraestrutura rodoviária, foco do paper, não reduz os tempos de viagem, mas os mantêm constantes ou até mesmo os aumentam. Este fenômeno cria um problema na escolha de investimentos:  a sociedade está subsidiando, através das grandes obras públicas, o espalhamento urbano, o distanciamento das origens e destinos e, no Brasil, onde ainda a posse do automóvel é concentrada nas classes sociais mais altas, a mobilidade dos ricos.

Mas será isto verdade? O autor se serve de dados britânicos e conclui que, nos últimos 40 anos, o tempo médio diário de viagem gasto por cada cidadão esteve estável em 1 hora, com uma ligeira tendência de crescimento. Para o Brasil as sérias históricas são semelhantes, como o mostra o Urban Demographics, mantendo-se constantes ou com crescimento, mas nunca diminuindo da média de 1 hora diária, uma fronteira temporal que já foi estudada e recebeu o nome de Constante de Marchetti. Marchetti atesta que, desde os primórdios da nossa civilização, propositadamente ou não, as pessoas alocam um tempo diário para transporte, o chamado travel time budget de Yacov Zahavi, que, independente da localização geográfica, cultura ou era, girou sempre em torno dos 60-70 minutos por dia.

Esta constatação obriga rever como projetamos e construímos nossas infraestruturas de transporte. Porém como mostra um relatório recente do departamento de transportes inglês, os ganhos de tempo são ainda parâmetro crucial na avaliação econômica e tomada de decisão na Inglaterra, Alemanha, Países Baixos, Suécia, Estados Unidos, Nova Zelândia e Austrália. O Brasil não foge à regra, como se pode ler no relatório final do Plano de Mobilidade Urbana Sustentável da Grande Florianópolis – PLAMUS, de outubro de 2015.

O projetista assume que o benefício principal do sistema de transporte é diminuir os tempos de viagem pois, assim, o passageiro ou motorista pode utilizar este tempo ganho em algo mais valioso, tanto em trabalho ou atividades pessoais. Ele ignora que esta nova infraestrutura pode induzir a mudanças nos comportamentos e nos usos do solo, gerando viagens mais longas.

Devemos então desconsiderar os ganhos de tempo?

Meu entendimento é de que não devemos desconsiderá-los, mas devemos encará-los de forma mais realista, sem superestimar a sua importância. Há outros ganhos que as infraestruturas trazem e que refletem melhor os reais benefícios desses investimentos, como ganhos de aglomeração econômica, competitividade e aumento da área de captação das empresas (uma nova rodovia permite que uma empresa tenha acesso mais rápido tanto aos clientes atuais como a novos clientes). Mas, acima de tudo, devemos parar de subsidiar o espraiamento urbano e a melhor forma de fazer isso não é parando de construir rodovias, mas sim pedagiando-as adequadamente.

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  • A revisão do Plano Diretor de São Paulo em 2014 contempla o adensamento ao longo dos eixos de transporte. Porém, o plano não oferece mecanismos de redução da mancha urbana aliando-a a uma forte verticalização e adensamento das áreas centrais. A despeito do aumento do tempo de viagem, São Paulo continua expandindo a periferia e levando até lá equipamentos de consolidação de novos bairros como habitação, asfalto, linhas de ônibus, CEUs, metrô e trens. Um contra senso total. Não é na periferia que estão as maiores distâncias? Falta entendimento entre o governo estadual, responsável pelo transporte de grande capacidade e o municipal que cuida das linhas de ônibus. Inexplicavelmente, ainda não há um planejamento da metrópole para os próximos 20 ou 30 anos. Porém, seria extremamente vantajoso se a redução da mancha urbana viesse acompanhada da recomposição das áreas verdes que foram perdidas na periferia, sobretudo nos últimos 40 anos.

  • Uma dúvida: como é possível “vender” o adensamento urbano como algo positivo à população se cidades como Los Angeles e Dallas têm tempos de deslocamento diário médio menores que, por exemplo, Tokyo?

    • João, não acho que o tempo de deslocamento entre essas cidades seja muito diferente, pelo menos vendo os dados que eu tive acesso. Além disso, acredito que tempo de deslocamento diário médio seja apenas uma métrica para avaliar a qualidade urbana de uma cidade. Devemos avaliar também qual a qualidade e qual o custo desse deslocamento, além da qualidade urbana do resto da cidade: se este deslocamento está produzindo espaços públicos e/ou qualidade do ar melhor ou pior para a cidade.

      Abs

  • Bom texto! Muito polêmico! Qual seria a saída? Diminuir as distâncias com a alavancagem do crescimento vertical das cidades? Regular a demanda através de pedágios pode n ser viável em funçāo da inelasticidade de sua demanda: condiçāo natural deste tipo de mercado.

    • Oi Mauro. Sim permitir maior adensamento dos corredores é uma ótima solução. O Caos Planejado defende essa ideia e tem vários textos a respeito. A respeito dos pedagios: a demanda de viagens é mais elástica que se imagina! Pedagiar uma rodovia não vai só alterar o volume de tráfego através da diminuição das viagens desnecessárias mas tb vai alterar a ocupação dos veículos e os modelos de negócio de transporte . Lembre-se que nós já pagamos a rodovia só não sabemos quanto nem como o dinheiro sai do nosso bolso e chega até à rodovia. O pedagio clarifica isso