O mito da gentrificação
Imagem: Ryan la Chica.

O mito da gentrificação

O fenômeno da gentrificação é extremamente raro e não é tão ruim para os pobres como você imagina.

18 de novembro de 2015

Começou no Soho, mudou-se para Chelsea e, então, East Village. Revoltas na Tompkins Square em 1988 garantiram algumas manchetes, mas não impediu seu avanço rasteiro. Se moveu para o baixo Harlem, atravessou o rio para o Park Slope. Williamsburg e Fort Greene vieram em seguida; hoje, ameaça até mesmo Bedford-Stuyvesant. Nova York não é a única cidade em que ela se espalha. San Francisco, Washington e Boston foram provavelmente ainda mais afetadas por ela. Seattle, Atlanta e Chicago a experienciaram em larga escala, também. “Ela”, como você deve ter imaginado, é a gentrificação. Se você mora em uma dessas cidades, provavelmente acha que sabe como ela funciona. Artistas, boêmios e casais gays vêm primeiro.

Eles se mudam para os decadentes — mas charmosos e históricos — lares e lofts próximos aos centros urbanos. As casas são reformadas. Cafés modernos aparecem. A segurança pública melhora. Então, aluguéis e preços dos imóveis começam a subir.

O tipo criativo, cabeça-aberta e amante da diversidade, que compunha a primeira onda de gentrificadores, dá lugar a advogados, banqueiros e techies. Como os aluguéis e preços continuam a subir, os residentes anteriores — frequentemente pessoas negras de baixa renda — são forçados a sair.

Essa é a história, pelo menos. Leia o CityLab, do The Atlantic, e você frequentemente encontrará manchetes do tipo “Por que a gentrificação é tão difícil de se conter” ou “Não há como não ser um gentrificador”.

Progressistas e conservadores concordam que ela é ruim (no entanto, progressistas culpam os empreendedores e conservadores culpam as regulações onerosas que limitam os empreendimentos). Até o blog feminista Jezebel entrou nessa, ao criticar a cantora Taylor Swift por fazer o que consideraram um hino à gentrificação.


Economistas não encontraram evidências de que pobres se mudam de bairros gentrificantes em uma velocidade maior do que a normal.


Que a gentrificação desloca pessoas pobres e negras, para dar lugar a pessoas ricas e brancas é um argumento tão senso-comum que a maioria o aceita como um fato presente na vida urbana. Não é. Gentrificação desse tipo, na verdade, é extremamente rara.

O status socioeconômico da maioria dos bairros se mantém notavelmente estável ao longo do tempo. Quando a composição étnica de bairros predominantemente negros e mais pobres realmente muda, geralmente é por causa de latinos e outros imigrantes que se mudam para lá — e tal mudança de composição é provavelmente mais benéfica do que o contrário.

Quanto ao deslocamento de moradores — a característica mais indesejável da gentrificação — há poucas evidências de que elas ocorram de fato. Na verdade, os tais bairros em gentrificação parecem ter menos evidências de deslocamento do que os não-gentrificados. É hora de aposentar o termo gentrificação por completo.

Quatorze anos atrás, Maureen Kennedy e Paul Leonard da Brookings Institution escreveram que gentrificação é um conceito “carregado politicamente, que geralmente não tem sido útil para resolver o debate sobre crescimento e as mudanças em comunidades porque seu significado não é claro”. Isso é ainda mais verdade hoje em dia.

Algumas cidades americanas têm, sim, sérios problemas de acesso a moradia, mas não são os problemas que os críticos à gentrificação pensam que eles são. Pior, o foco da mídia em gentrificação tem obscurecido problemas que são realmente sérios: o crescente isolamento de bairros para pobres e minorias e o alarmante crescimento da pobreza extrema.

Gentrificação, como é geralmente entendida, é mais do que aumento de preços das residências. É sobre a mudança do perfil de comunidades de baixa renda, predominantemente negros ou latinos, para alta renda, predominantemente brancos.

Demógrafos e sociólogos identificaram bairros onde esse tipo de deslocamento ocorreu. Wicker Park, em Chicago; Harlem e Chelsea, em Manhattan; Williamsburg, no Brooklyn — estes locais realmente se gentrificaram.

Sociólogos e demógrafos capturaram essas mudanças em estudos de caso e etnografias. Mas começando uma década atrás, economistas passaram a fazer perguntas matizadas sobre o deslocamento que as outras ciências sociais estavam documentando.

Registrar que pessoas de baixa renda estavam sendo forçadas a se mudar de determinados bairros em que os preços dos imóveis subiram não necessariamente significa por si só que a gentrificação estava causando o deslocamento, notaram.

Pessoas mais pobres costumam se mudar de bairros não-gentrificantes, também. Na verdade, pessoas de baixa renda se mudam por uma variedade de razões. A pergunta real era se pobres se mudam de bairros gentrificantes mais intensamente do que de bairros não-gentrificantes.

Uma das primeiras pessoas a explorar essa questão de modo sofisticado foi o economista da Universidade de Washington Jacob Vigdor. Em 2002, Vigdor examinou o que havia ocorrido em Boston entre 1974 e 1997, um período de gentrificação supostamente intensa.

Mas Vigdor não encontrou evidências de que pessoas pobres se mudaram de bairros gentrificantes num ritmo maior do que o normal. Na verdade, as mudanças partindo de bairros em gentrificação foram menores. Não foi apenas Boston.

Em 2004, os economistas da Columbia University Lance Freeman e Frank Braconi conduziram estudo semelhante sobre gentrificação em Nova York nos anos 90. Descobriram, também, que moradores de baixa renda em bairros “gentrificantes” tendiam a se mudar menos do que os residentes em outros bairros que não possuíam características típicas de gentrificação.

É claro, deslocamento não é a única maneira em que a gentrificação afeta os mais pobres. Moradores de bairros gentrificantes podem permanecer ali mas sofrer com aluguéis mais caros. Freeman e Braconi descobriram que aluguéis realmente subiram em bairros gentrificantes em Nova York.

Mas a alta dos aluguéis teve um efeito inesperado: com aluguéis mais caros, moradores se mudaram menos. “A interpretação mais plausível”, os autores concluíram, “deve ser a mais simples: ao gentrificar, os bairros melhoram de tal maneira que são apreciados tanto pelos moradores menos favorecidos quanto pelos mais abastados.”

Em 2010, a economista da University of Colorado-Boulder, Terra McKinnish, juntamente com Randall Walsh e Kirk White, examinaram a gentrificação na nação como um todo ao longo dos anos 90. McKinnish e seus parceiros descobriram que a gentrificação criou bairros atrativos para pertencentes a minorias, particularmente famílias com crianças ou idosos como residentes. Não encontraram evidências de deslocamento ou danos.

Enquanto a maior parte dos ganhos de renda desses bairros terem ido para pessoas brancas qualificadas abaixo dos 40 (o gentrificador arquetípico), pessoas negras menos qualificadas também viram suas rendas aumentarem. Elas também tendiam mais a permanecer nesses locais. Em suma, residentes negros com menos qualificação pareciam ter se beneficiado da gentrificação.

McKinnish, White e Walsh não foram os únicos pesquisadores cujos trabalhos sugeriram que moradores negros também se beneficiam da gentrificação. Em seu livro “Stuck in Place: Urban neighbourhoods and the end of progress toward racial equality”, o sociólogo Patrick Sharkey estudou de perto bairros predominantemente negros e viu mudanças significativas em suas composições étnicas entre os anos 70 e 90. Descobriu que quando a composição de bairros negros mudava, não era porque pessoas brancas se mudavam para lá. Isso raramente aconteceu.

Para comunidades negras, a mudança em seus bairros acontece quando latinos começam a se mudar para lá. Às vezes essas mudanças podem ser difíceis, resultando como geralmente acontece em novos líderes políticos e mudanças no caráter das comunidades. Mas a pesquisa de Sharkey sugere que também trazem benefícios reais.

Moradores negros, particularmente entre jovens, morando em bairros mais diversos costumam encontrar empregos significativamente melhores do que colegas em cenários parecidos que moram em bairros menos diversos.

Em resumo, Sharkey escreve “há fortes evidências de que quando as desvantagens de um bairro diminuem, o contexto econômico da juventude negra melhora, e substancialmente.” Em outras palavras, o problema não é que a gentrificação prejudique comunidades negras, mas sim que ela geralmente as evita.

Sociólogos de Harvard, Robert Sampson e Jackelyn Hwang mostraram que bairros com mais de 40% de população negra gentrificam muito mais lentamente do que outros bairros. A aparente indisposição de outros grupos étnicos se mudarem para comunidades predominantemente negras ou investirem nelas, por sua vez, perpetua a segregação e desigualdade na sociedade americana.


O problema não é que a gentrificação prejudica comunidades negras, mas sim que ela geralmente as evita.


Enquanto críticos à gentrificação denunciam um processo que é em grande parte imaginário, estão deixando de lado um problema muito mais sério — a expansão da pobreza extrema. No último ano, os economistas Joseph Cortright, da Impresa Consulting de Portland, e Dillon Mahmoudi da Portland State University se puseram a investigar como os bairros mais pobres dos Estados Unidos haviam mudado com o tempo. Começaram voltando a 1970 e identificando 1.100 setores censitários localizados a menos de 16 quilômetros dos centros financeiros de 51 cidades com altos índices de pobreza.

Eles se perguntaram uma pergunta simples: como a situação socioeconômica desses lugares mudou nos 40 anos seguintes? A resposta: a maioria não mudou. Dois terços dos bairros com alta pobreza em 1970 se mantiveram como bairros de alta pobreza em 2010.

Apenas aproximadamente 100 bairros viu seus índices de pobreza reduzirem a menos da média nacional. A área metropolitana típica possuía um ou dois bairros de altos índices de pobreza que poderiam ser concebivelmente ser descritos como gentrificantes.

No entanto, Cortright e Mahmoudi encontraram uma outra mudança significativa. Enquanto em 1970 o número de setores censitários nas características pesquisadas com mais de 30% de população pobre era de 1.100, em 2010 esse número subiu para 3.100.

Em outras palavras, o número de áreas de alta pobreza próximas aos centros financeiros havia quase triplicado. Para piorar, o número de pessoas vivendo em extrema pobreza nessas áreas havia quase dobrado. E os moradores dessas regiões são predominantemente negros.

Se a gentrificação não ocorre com tanta frequência — e se ela ajuda ao invés de prejudicar os moradores existentes — por que há tantas pessoas tão preocupadas com ela? Há pelo menos duas razões. A primeira tem a ver com os locais onde ela acontece.

De acordo com Cortright e Mahmoudi, apenas três cidades (Nova York, Chicago e Washington) continham um terço de todos os setores censitários que viram suas taxas de pobreza caírem de mais de 30% em 1970 para menos de 15% em 2010.

Metade de todas as áreas do país que “gentrificaram” (se ainda queremos chamá-las disso) se localizavam nessas três cidades. Não supreende que moradores de Nova York e Washington consideram gentrificação um problema tão grande.

A outra razão por continuarmos a discutir a gentrificação provavelmente tem mais a ver com os medos da classe média. Os preços de habitação nas cidades costeiras mais caras dos Estados Unidos aumentaram consideravelmente desde o fim da Grande Depressão. Expressar preocupação com a “gentrificação” nessas cidades pode simplesmente ser outro modo de expressar preocupação com o aumento dos preços de habitação.

Mas na verdade, diferentes tipos de cidade possuem problemas bem diferentes de acesso à moradia. Nas cidades costeiras, os custos de habitação costumam ser muito mais altos que seus custos de construção. Isso se dá principalmente por oferta limitada. Empreendedores em Washington não podem converter as casas geminadas de Adam Morgan em um distrito residencial de alta densidade, então os preços das casas sobem.

A alta demanda tem seu papel também, é claro. Parte dessa demanda reflete a preferência por um determinado tipo de habitação, mais antigo. O fato de cidades globais darem salários maiores para a maior parte de seus trabalhadores, no entanto, é quase sempre mais importante.

Gentrificação não é a causa dos problemas de acesso à moradia dessas cidades. É um sintoma. Há um grande número de cidades com problemas de acesso a moradia bem diferentes. São as cidades do Rust Belt, tais como Detroit, onde o preço de venda das casas está abaixo de seus preços de construção. Estas são cidades com problemas de renda. Cidades onde o custo de habitação é muito mais alto do que o custo de construção requerem uma abordagem diferente de onde a situação é inversa.

Cidades costeiras podem se beneficiar de exigências que empreendedores separem uma porção de novas unidades para habitação social (a chamada “cota de solidariedade”*), mas alguns economistas argumentam que essas exigências podem sair pela culatra, aumentando o custo de novas habitações ainda mais, e todos concordam que os efeitos de tal dedicação serão mínimos.

Certamente não vai reverter a transformação dessas cidades em enclaves para os ricos. Em contraste, muitos moradores de cidades do Rust Belt se beneficiariam de subsídios ao aluguel (ou subsídios em dinheiro), ao invés de cotas habitacionais.

Ainda assim, planejadores com frequência falham em encaixar as soluções às circunstâncias. Cidades do Rust Belt requerem cotas de solidariedade tanto quanto San Francisco, enquanto as instituições da Bay Area como Stanford University fornecem subsídios generosos aos novos membros, medida que só serve para forçar para que os preços subam, ao invés de pesquisar por novas maneiras de aumentar as ofertas.

Aposentar o termo gentrificação não fará nada para melhorar esses problemas, é claro. Mas removerá uma distração. Temos que examinar como os bairros realmente mudam e por que alguns não mudam. Debater sobre restrições à oferta (em adição a prover moradia acessível) nos San Franciscos da América e descobrir como prover subsídios ao aluguel no Rust Belt. Não será tão divertido quanto denunciar a gentrificação, mas pelo menos será direcionado aos problemas que são reais.

Este artigo foi originalmente publicado no site Slate em 14 de janeiro de 2015. Foi traduzido por Lucas Magalhães, revisado por Anthony Ling e publicado neste site com autorização do autor.

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