O direito à laje: vida social e outras formas de conceber o espaço
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O direito à laje: vida social e outras formas de conceber o espaço

O papel versátil das lajes nas favelas e como elas se adaptam aos caminhos e vivências dos moradores

4 de janeiro de 2024

Parte da revisão e atualização da teoria arquitetônica recusa os binarismos vigentes tanto no senso comum quanto na esfera de ensino e transmissão de arquitetura. A oposição entre centro-periferia, a cidade “formal” e “informal”, o projeto como técnica e a construção como improviso são dualidades recorrentes na arquitetura, e possuem uma longa história de disputas. Apesar da hegemonia do norte-global em relação ao que deve ser a boa arquitetura, ou como se deve projetar, a realidade sempre se mostrou mais complexa, diversa e multidimensional.

No Brasil, uma das evidências disso é a favela. Fora a organização urbana — traçado e dimensão das ruas, loteamento de edificações, métodos construtivos que dizem respeito tanto aos materiais utilizados quanto à implantação em terrenos acidentados etc. —, essas zonas apresentam elementos específicos, como as lajes, que flexibilizam a norma construtiva e apresentam relações insólitas com a cidade, mas que abrem brechas para repensar a própria cartilha de “bons costumes” arquitetônicos.

É bom lembrar que não se trata de exaltar a precariedade social e construtiva, tampouco afirmar que as condições em comunidades periféricas “bastam” para seus habitantes. A requalificação urbana, segurança predial, conforto ambiental, mobilidade são alguns dos princípios universais (estes sim) que devem reger a prática projetual e as políticas públicas que atuam sobre a cidade como um todo. A questão que se coloca é a flexibilidade dos elementos construtivos, o uso que se faz deles e a possibilidade de refazer a relação do corpo em determinado espaço, bem como sua função, e se esta responde ou não à demanda de seus ocupantes, e como. Dado isso, o que a arquitetura espontânea (aquela que prescinde do conhecimento acadêmico) tem a ensinar à arquitetura “oficial”, isto é, institucionalizada?

Primeiramente, o caráter versátil. A laje é um desses elementos: componente estrutural, que pode ser piso ou cobertura. Na cidade “informal”, é ambos e mais. Pela necessidade de verticalização devido ao adensamento habitacional e, por vezes, terreno acidentado, a cobertura útil passa a cumprir uma infinidade de papeis no que diz respeito ao convívio social e rotina dos moradores. Normalmente, é cobertura de uma residência, mas configura um piso útil para parte das atividades da casa, como área externa, de lazer, ou de serviço, para instalação de varais, caixas d’água ou antenas.

Favela brasileira com lajes
Foto por: Pixabay

Apesar de configurar-se como uma cobertura útil, a laje em bairros mais vulneráveis diferencia-se daquelas em empreendimentos-padrão. No último caso, os terraços (ou rooftops) possuem uma função relativamente definida e comumente são equipados de acordo: áreas de lazer, jardins, mirantes, churrasqueiras, salões de festa etc. Já a laje pode servir a essas funções simultaneamente, sem descartar as instalações hidráulicas ou serviços domésticos.

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Além disso, a laje também faz o papel de rua. Dado que existe certa permeabilidade entre o público e privado em comunidades periféricas, e o acesso às lajes costumam partir diretamente da rua. Essa diluição de fronteiras é o que transforma as lajes em caminhos, de crianças em momento de lazer até fugas em perseguições policiais. Mas uma das transposições mais impressionantes que a laje prefigura é de “elevar” o nível da rua para que ela mesma torne-se rua ou calçada. Já que as ruas no nível do chão são estreitas ou íngremes, o que torna a circulação de veículos dificultada, o transporte de móveis ou objetos de maior porte por vezes acaba inviabilizado. A solução dos moradores é transportar esses objetos por cima das casas, através das lajes, ligadas por pontes improvisadas e temporárias, como que a solucionar um labirinto ligando dois pontos sem obedecer a seu traçado – mas talvez criando outro, com seus próprios truncamentos.

A situação da laje é tão específica em sua mutabilidade que a área também é tratada como unidade autônoma. Por vezes, a laje torna-se uma residência independente de sua base, mas para membros de uma mesma família, ou ainda é comercializada como imóvel entre pessoas sem vínculo familiar. Esse mercado imobiliário paralelo possui tamanho impacto social que em 2016 editou-se uma medida provisória, transformada em lei no ano seguinte (Lei nº 13.465/2017) e regulamentada por decreto em 2018 (Decreto nº 9.310/2018) para que se incluísse a laje no rol de direito reais do art. 1.225 do Código Civil.

Em termos jurídicos, isso significa que o Código Civil passou a reconhecer a validade da laje como unidade imobiliária passível de comercialização, na tentativa de amparar transações que já ocorriam à margem da ordem social vigente, como consequência da invisibilização ou descaso em relação a grupos sociais, a bairros específicos e ideais rígidos do que é a “boa” cidade. Embora essa inclusão seja bastante relevante — especialmente dentro da esfera jurídica, sabidamente conservadora e de adaptação mais lenta —, a medida pode parecer insuficiente se não vier acompanhada de respaldo social, econômico e urbano. Afinal, o reconhecimento legal do direito de laje significa inscrevê-la na municipalidade, com responsabilidades fiscais, sem que a vida sócio-econômica do proprietário lhe permita arcar com elas. A depender da situação de vulnerabilidade econômica do proprietário, o custo do imposto pode comprometer uma porcentagem proporcional maior de sua renda do que um proprietário de imóvel mais abastado. Ademais, se o direito de laje não estiver acompanhado de melhorias urbanas, sem que a arrecadação reverta-se em qualidade espacial, a própria medida legal torna-se ferramenta de precarização e opressão.

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A metamorfose constante da laje ensina que existem outras formas de se estar na cidade. Se a mutabilidade da laje — que combina piso e cobertura, lazer e hidráulica, lavanderia e mirante, residência e (outra) residência, rua e residência — normaliza-se na vida prática a ponto de se fazer reconhecer na esfera jurídica, estamos diante de uma prova cabal de que o espaço é definido por seus ocupantes. A forma segue a necessidade imediata do ocupante, e não deve ser fixa a ponto de conformar o corpo. A transmutação constante da laje é fruto de arranjos e negociações. De certa maneira, replica em si o todo da cidade.

Publicado originalmente em ArchDaily, em dezembro de 2023.

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