Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Hoje ícone de Santiago, Mapocho era muito similar aos rios da cidade de São Paulo: poluído e com mais motivos para escondê-lo do que celebrá-lo.
11 de maio de 2017A prefeitura de São Paulo anunciou, na segunda semana de Maio de 2017, que está considerando uma concessão à iniciativa privada das marginais da cidade. Uma ideia que tem grande potencial, considerando o estado miserável das marginais paulistanas, e sua relação inglória na convivência urbana.
Fui levado, tão logo passei os olhos pela reportagem, de volta às semanas que passei na capital chilena, Santiago. A cidade tem um rio que divide seu território em dois, o Rio Mapocho. Também canalizado, até o início da década passada, o Mapocho era muito similar aos rios que cortam a cidade de São Paulo: poluído, funcionava mais como um depósito de lixo, e as administrações públicas buscavam mais esconder que celebrar a existência de um corpo d’água.
Também como na capital paulista, em Santiago o rio era acompanhado por rodovias expressas de alta capacidade, expandidas no ápice da ditadura de Augusto Pinochet. As estradas acompanhavam as margens dos dois lados do rio e reduziram o preço de terrenos e imóveis próximos ao seu trajeto. O cada vez mais intenso mau cheiro do Mapocho também foi, progressivamente, afastando os moradores da região.
A expansão das autoestradas ao longo do Mapocho, cujo objetivo central era amainar o crônico trânsito na cidade — conectando a área industrial aos subúrbios e novo polo de desenvolvimento no bairro de Providencia — também tinha motivações políticas. O Mapocho se tornara, nos anos 60 e 70, grande palco para manifestações políticas anônimas, em denúncia ao desaparecimento de civis e à opressão nos anos da ditadura.
O efeito também seria devastador ao centro de Santiago, onde se encontram os três mercados públicos principais da cidade. Sua função como centro de fornecimento e compras seria reduzida a um simples distribuidor, com turistas e compradores se afastando de uma área cada vez mais árida, suja e acinzentada.
Este cenário sofreria uma mudança radical no início da década passada, com a despoluição do rio. Mas outro movimento foi fundamental para reconectar a cidade com o Mapocho: uma série de concessões à iniciativa privada e inauguração de um projeto que ficaria conhecido ao redor do mundo.
Os projetos de autoestradas urbanas concedidas pelo governo chileno compreendiam a transformação das rodovias de ligação que cortavam a cidade, enquanto se construiriam novas para circundar a metrópole do país. A ideia era expandir a capacidade das estradas e desafogar estradas centrais, mas a ideia evoluiria para um sistema de túneis e anéis viários que iriam remodelar toda a experiência urbana em Santiago.
Concebida por meio de PPPs — mesmo modelo mencionado pela equipe de Dória — o projeto mudou totalmente a relação de Santiago com o Rio Mapocho. Em projeto que seria copiado em outras cidades latino-americanas, o edital de concessão transformou a Ruta Costanera Norte — importante ligação leste-oeste da cidade que acompanha o Mapocho — de uma cicatriz cinza, uma barreira física ao rio, em um túnel expresso.
Inaugurado em meados de 2005, transpôs para o subterrâneo quatro quilômetros de vias, impactando onze dos mais populosos bairros de Santiago, incluindo o Centro — cujo processo de renovação, em curso desde meados dos anos 80, até então não tinha conseguido penetrar a região dos mercadões públicos, que margeiam o Mapocho.
A concessão dividiu os custos das obras com a iniciativa privada que, em troca, cobra pedágios. As vias são lisas, a sinalização abundante e houve melhora sensível na fluidez do trânsito da Região Metropolitana de Santiago. Além de representar melhor qualidade de malha viária, a Ruta Costanera Norte, ao precificar o trajeto, reduziu os incentivos para o transporte individual, diminuindo o fluxo total de carros nesta rodovia. Isso foi potencializado por uma campanha de carpooling — onde se compartilha o veículo — feita pelas empresas concessionárias em uma era pré-Uber. A queda nos índices de congestionamento chegou a 37%, números que foram consistentes desde sua inauguração.
Ademais, o projeto mitigou o impacto da poluição na qualidade vida chilena por meio de um projeto de purificação do ar em parceria com a concessionária. Megaventiladores instalados nos cantos da rodovia fazem a contenção de partículas poluidoras da atmosfera, enquanto as milhares de árvores plantadas no parque linear, imediatamente acima da autoestrada, contribui para o trabalho. O alívio na pesada atmosfera de Santiago — circundada pelos Andes — chegou a cerca de 15% (em termos de CO₂ e SO₂).
Além disso, o edital previa a execução pela empresa vencedora de um parque linear ao longo do Mapocho, acima do túnel. Caminhar pelo parque linear é, sem dúvidas, uma das experiências mais agradáveis que um visitante pode ter ao visitar a capital chilena, pontilhado por uma série de parques, bibliotecas públicas, atividades culturais espontâneas e hortas públicas. Os bairros imediatamente às margens do rio Mapocho são muito agradáveis, sem dar sinais de que uma via de alta capacidade passa por ali.
As vias que agora acompanham o parque linear do Mapocho têm velocidade reduzida, compatível com vias locais — enquanto a velocidade da marginal, em si, pode inclusive ser aumentada. Uma via expressa subterrânea pode reduzir sensivelmente as chances de acidentes e de mortalidade ao longo da rodovia — tema que vem mobilizando a mídia paulistana desde as alterações de velocidade pela prefeitura anterior.
A Autopista Costanera Norte também foi reverenciada internacionalmente por seu sistema de pagamentos de pedágios, uma inovação que certamente seria bem-vinda ao ritmo frenético de São Paulo. O Televía é um pequeno equipamento acoplado ao carro que permite que o automóvel seja cobrado sem parar em um posto de pedágio. A tecnologia empregada pelo Sem Parar em algumas rodovias pedagiadas do país é inspirada no modelo chileno, e seria bem vinda nas marginais.
O sucesso da transposição da via expressa para o subterrâneo teve tanto êxito que os chilenos prosseguiram com a transformação de outras pistas, com a extensão do projeto sendo uma das grandes marcas do governo Sebastián Piñera (RN), e tendo continuidade na gestão da opositora Michelle Bachelet (PS).
A transposição para o subterrâneo de parte das marginais de São Paulo, ainda que pareça projeto ambicioso demais para conclusão, não me parece impossível. Santiago, uma grande cidade, o fez no centro nervoso de sua malha urbana, já inteiramente estabelecida e amadurecida. Ainda que, claro, com uma série de transtornos que irritaram por um período não desprezível de tempo os moradores, o legado da mudança é algo espetacular, quase inacreditável — transformou a relação da cidade com si mesma, fez bairros então decrépitos ressurgirem em qualidade de vida, com efeitos sistêmicos que reverberaram por toda a cidade.
As marginais paulistanas, que cortam a cidade em todas as suas regiões e fazem parte do cotidiano de boa parte dos habitantes, só têm a perder com a falta de ambição, de arrojo, de coragem e de ousadia, que vem sendo a tônica das atitudes do poder público com as margens do Tietê, Pinheiros e Tamanduateí.
Preferimos fingir que os rios não estão ali, respondemos com deboche qualquer sugestão mais séria para mudança, ignoramos os potenciais de um respiro de natureza na metrópole paulistana — rios, inclusive, muito mais importantes para o ecossistema local que o Mapocho é no Chile, por exemplo.
Resta ver se a intenção da prefeitura é realmente séria. Se o projeto de PPP se tornar uma realidade para a capital paulista, isso irá requerer bastante energia e foco para um bom projeto. Apenas a cobrança de pedágios, em troca de manutenção da qualidade da pista e suas várias estruturas viárias, seria mais do mesmo.
Mas, creio, já seria um avanço sensível. A cidade pararia de subsidiar vias que serviram, sobretudo, para incentivar o uso do automóvel em uma cidade asfixiada com poluição. Conforme abriu espaço para um influxo enorme de veículos, contribui para engarrafar a cidade. Uma parte não desprezível do orçamento público ficaria livre do fardo com as marginais, o que faria sobrar mais dinheiro para todo o resto da administração pública.
Por marcar uma mudança importante, ao trazer os rios ao debate da cidade que queremos, a mera intenção da prefeitura de São Paulo é boa notícia. Os detalhes ainda são desconhecidos — e, por isso, fica aqui a dica para se olhar com carinho casos como o de Santiago, que se tornou outra cidade com a revalorização de uma grande riqueza natural.
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