Aprendendo com o urbanismo de Curitiba | Dias 3 e 4
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O holandês Aldo van Eyck levantou mais de 700 parques infantis enquanto esteve na gestão pública de Amsterdã. As intervenções eram simples e completamente integradas ao entorno.
22 de setembro de 2025No final dos anos 1940, Amsterdã estava parcialmente destruída pela 2ª Guerra Mundial (1939–1945), com alto déficit de habitação e de equipamentos de uso coletivo. Aldo van Eyck ocupava um cargo no Departamento de Obras Públicas da cidade. Sua chefe direta, a também arquiteta Jakoba Mulder, o envolveu no projeto de um playground em Bertelmanplein, então um terreno abandonado, no sul da cidade.
Nascia ali, em 1947, o primeiro espaço destinado às crianças com o olhar de Eyck: fundido à cidade, sem separação alguma (não havia muro ou cerca) entre os equipamentos e a calçada, com bancos para sentar e com o uso de poucos materiais para estimular a imaginação. Os parquinhos existentes na cidade, até aquele momento, eram cercados e havia a necessidade de se pagar uma pequena taxa.
Ficou claro, desde o início, que a proposta de Eyck ultrapassava o comando da Prefeitura: ele desejava reestruturar e criar ambientes, de maneira rápida, em terrenos não utilizados entre os blocos residenciais. O arquiteto propunha a interação social, o convívio intergeracional e uma nova relação com a cidade. A novidade foi a sensibilidade em promover esses encontros a partir do centro nervoso das brincadeiras infantis.
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Nessa primeira experiência, foram instalados um tanque de areia, em formato retangular, obstáculos de concreto e barras de ginástica. Gabriela Burkhalter, urbanista e cientista política suíça, definiu o playground de estreia como: “um projeto surpreendentemente simples, mas sob medida para o local” (publicado no livro “Lina por Aldo”). O espaço funcionava como uma pequena praça totalmente integrada à cidade, tanto visual como fisicamente, entre edifícios de três pavimentos.

De 1947 a 1978, foram criados 734 parques infantis. A adesão e usufruto da população foram imediatos e os cidadãos pediam à Prefeitura a construção de playgrounds em seus bairros. Havia um conjunto de equipamentos lúdicos simples que Eyck combinava de acordo com o espaço da vez. Peças de mobiliário urbano, como bancos de apoio, acompanhavam todos os locais, e alguns tinham iluminação no nível do pedestre e arborização.
As centenas de playgrounds que tomaram a cidade de Amsterdam (ao longo de 30 anos), a rápida ocupação dos locais por crianças e suas famílias e a lógica que norteou Aldo van Eyck – priorizando o bem-estar de todas as idades e condições – diziam por si só: os parquinhos foram recebidos e incorporados completamente à rotina. A ideia original de transformar espaços ociosos em lugares de encontro e lazer havia sido alcançada.

Jakoba Mulder, chefe de Eyck, conta que, quando começaram a implementação, “a cena era tão triste que entendi que a coisa certa a se fazer era colocar ao menos uma caixa de areia em cada bairro para as crianças”. O papel de Mulder foi fundamental (apesar de pouco reconhecido) e teve um sentido ampliado: em 1934 havia sido iniciado um robusto plano de intervenção urbana, interrompido pelos anos do conflito armado.
Antes disso, em viagens a Estocolmo e Copenhage, ela se encantara com novas possibilidades de espaços recreativos que incluíam piscinas infantis e esculturas abstratas em parques públicos. A defesa para que crianças se sentissem parte da cidade e se relacionassem com o espaço público ganhou uma nova musculatura no pós-guerra.
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Porém, a visão desses espaços e o entendimento de urbanismo vigente quase um século atrás ia na direção oposta ao que propunha a dupla Eyck e Mulder. O Novo Plano para Amsterdam (AUP) bebia diretamente do ideal modernista da separação funcional, ou seja, habitação, trabalho, circulação e recreação deveriam estar territorialmente separados.
O documento que cristalizou tal raciocínio foi a Carta de Atenas (1943), na qual Le Corbusier defendia a reconstrução massiva das cidades, segregando os locais de acordo com suas funções e priorizando os veículos motorizados nos fluxos de deslocamento. Em 1961, Jane Jacobs fez uma extensa crítica a esse planejamento em seu livro “Morte e Vida de Grandes Cidades”, explicando como esses ideais prejudicam os espaços públicos e a vitalidade nas ruas.
Aldo van Eyck era igualmente avesso a essa lógica. O arquiteto era favorável à escala humana e se preocupava com o papel social da arquitetura. A transformação de terrenos baldios, áreas vazias e mal conservadas, em locais de integração pode ser entendida como uma operação tática de reconstrução urbana. Os playgrounds instalados a partir de 1947, em Amsterdã, foram os precursores de um planejamento de cidade mais humano.
O arquiteto resume, finalmente: “Essas crianças que brincam demonstram as potencialidades latentes da renovação urbana de modo geral. Com um pouco de concreto, madeira, alumínio ganham vida centros de interação social: espaços nos quais crianças, pais e mães se encontram, verdadeiras extensões da soleira da porta, onde o mundo externo e o mundo interno, a esfera da vida coletiva e a da vida privada, convergem”.
Hoje, como herança à Amsterdã, 90 dos parques de Aldo van Eyck estão mantidos.
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