Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
O aumento do controle sobre o espaço público é gradual e imperceptível através do design da "Novarquitetura".
22 de setembro de 2014Em uma palestra para o TEDx Sudeste em 2010, Rodrigo Pimentel (ex-BOPE que serviu de inspiração para o Capitão Nascimento, no filme Tropa de Elite) tentava, através de relatos pessoais e estatísticos, apresentar uma solução ao problema da segurança nas favelas no Rio. Sua conclusão, uma defesa a UPPs e processos de ocupação permanente, era certamente duvidosa, porém seu diagnóstico era preciso: a violência no Rio tem origem na disputa de território.
A notícia, embora alarmante, era previsível. A verdade era que grande parte dos conflitos urbanos, violentos ou não, tinham sua origem em disputas espaciais: skatistas e moradores brigavam pelo uso de praças; sem-tetos discutiam com donos de estabelecimentos pelo uso de um lugar fora da chuva; candidatos disputavam pela visibilidade de seus cavaletes. O romantismo com o que principalmente arquitetos enxergavam o espaço público — um lugar de trocas e de experiências — era verdadeiro porém profundamente unilateral. Nem todos aguentaram o choque.
Em uma espécie de surto paranoico, tentando associar a imagem divina de ágora à sua dura — apesar de extremamente dinâmica — realidade, planejadores e outros profissionais criaram um novo modelo de desenho urbano e de tomada de decisões. Para este, o denominado público é mantido, através de ilusões, como um espaço multifuncional e abrangente. Entretanto, sua realidade arquitetônica é extremamente restritiva. Na falta de melhor expressão, o movimento foi chamado de Novarquitetura.
George Orwell, em sua emblemática obra 1984, descreve um dialeto fictício, onde a variedade de palavras e significados da língua inglesa é constantemente diminuída e limitada. Novílingua, como foi chamada, reduzia a capacidade semântica até o ponto de total objetividade — a abstração e a subversão eram informuláveis. Através da restrição linguística, o regime autoritário se manteria de forma sublime.
A novarquitetura portanto, trata-se de uma redução do vocabulário funcional da arquitetura usual. Na visão de seus praticantes, bancos são apenas para sentar, janelas para observar, áreas cobertas sob viadutos para… Bom, neste caso em específico elas não tem utilidade, mas sem-tetos não podem invadir o espaço visual dos carros passantes. O dialeto (sendo a arquitetura profundamente ligada à linguística) tem como objetivo a exclusão do conflito, porém a realiza através da destruição da pluralidade real e funcional.
Em sua forma menos sublime, onde a violência das intenções transparece, a Novarquitetura tende a gerar revoltas sociais inesperadas. Objetos que se assimilam a espinhos, ou o controverso “piso antimendigo” são constantemente delatados pela população que, constatando o absurdo contido em tais objetivos — a princípio benevolentes — exige a retirada dos mesmos. Não obstante aos contratempos, o estilo vem se aperfeiçoando.
Bancos dotados de braços intermediários se camuflam de modo a não demonstrar sua hostilidade ao deitar, skatestoppers pixelizam superfícies lisas, impedindo o “comportamento antisocial” de skatistas. No futuro, cães naturalmente evitarão parques e praças equipados de odores anticaninos imperceptíveis a humanos. Tudo é escondido em nome de uma coletividade despida de conflitos. O convívio é excluído pacificamente, através da maquiagem de um design restritivo. O disfarce, entretanto, é apenas uma das correntes do movimento.
A decisão de não projetar ultrapassa o design restritivo. A eliminação de objetos ou de intenções que possam ter em sua raiz um tom coletivo decorre do medo e de um olhar extremamente maternal em relação à maneira em que a cidade deve ser usada — característica popular entre os praticantes do estilo. Como opinião, a corrente é representada na oposição a bicicletas do Itaú em áreas que ainda não possuem ciclovia, ou na análise retrospectiva de que a reforma na Praça Roosevelt, por ter atraído skatistas, bares, teatros e outras atividades em disputa com moradores, não foi proveitosa. Como ação, a Novarquitetura se materializa (ou não) em cidades que, apesar de possuírem um regime de chuvas constantes, não constroem áreas públicas cobertas por medo da ocupação de sem-tetos. “Antes conforto que conflito”, mesmo que este seja decorrente de uma melhora no espaço urbano, é o lema por trás de tais decisões. Como tudo o que não pode ser visto, este tipo de decisão é raramente criticado. A ordem tem se tornado imperceptível…
Em sua crescente obstinação pelo bem estar social, arquitetos apoiam a irracional ideia de que não construir é superior a uma “boa arquitetura” (programaticamente), uma vez que a primeira decisão não gera demanda, competição e conflito. A Novarquitetura é característica de uma geração onde conforto e estabilidade são virtudes raramente questionadas. Sua caracterização como estilo é fictícia porém seus sintomas são indubitavelmente reais. Atualmente, Arquitetos esquecem que a relação entre o homem e seu espaço está constantemente baseada na condição de desafio.
Um bom projeto é sempre superior. Menos restrições sempre levam a um uso mais dinâmico do espaço. Conflitos são indicativos de necessidade e de demanda, não de problemas. Assim como crianças que preferem dividir um único brinquedo a não tê-lo, a partilha da cidade e de suas infraestruturas é certamente mais rica que seus aspectos negativos, e o crescimento na população urbana reflete essa realidade. Chegou o momento para a arquitetura retornar do campo da política social para exercer um papel mais significativo no processo das cidades. Em resumo, Caos Planejado.
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