Morte e Vida de Grandes Cidades, revisitado
Foto: Daniel Mennerich/Flickr

Morte e Vida de Grandes Cidades, revisitado

O livro "Morte e Vida de Grandes Cidades", de Jane Jacobs (1961), revolucionou a teoria urbana. Este artigo explora as ideias influentes de Jacobs e seu potencial para enfrentar os desafios urbanos atuais e melhorar a vida nas cidades.

8 de julho de 2024

Como o homem é um animal político, e uma existência intensamente social é uma condição necessária para o seu florescimento, conclui-se que a cidade é a melhor forma de organização espacial. Na cidade surge uma forma de sinergia, o todo sendo maior que a soma de suas partes, pois a coisa mais notável sobre as cidades é que elas exploram o potencial abundante de cada ser humano. Em nenhum outro lugar além da cidade pode-se encontrar tal variedade de engenhosidade humana, cooperação, cultura e ideias. O desafio para as cidades é que elas operam na sua própria lógica. As cidades são uma das melhores ilustrações da ordem espontânea. A cidade na história não surgiu como resultado de um plano racional; ao contrário, o que a cidade representa é a manifestação física de milhões de indivíduos tomando decisões sobre onde alocar suas casas, realizar transações econômicas e formar tramas sociais complexas. Esta realidade é difícil de conciliar com nossa preferência moderna pelo positivismo científico e racionalismo. Mas para que a Polis prospere, ela deve ser devidamente compreendida pelos inúmeros planejadores, reformadores, políticos e o grande corpo de cidadãos que habitam o espaço.

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Jane Jacobs entra em cena. Quando a história das cidades atingiu um ponto em que o ataque a elas parecia tão grande, tão vigoroso e tão feroz que parecia não haver volta, Jacobs, em sua obra-prima “Morte e Vida de Grandes Cidades”, tornou-se uma de suas mais ferrenhas defensoras, lembrando-nos de seu papel em cultivar a diversidade e o progresso, ao mesmo tempo em que ressaltava a lógica dentro da qual as cidades operam. Já se passou mais de meio século desde que Jacobs publicou essa obra seminal da literatura. Seus efeitos certamente foram sentidos, inaugurando uma mudança na forma como planejadores, incorporadores e formuladores de políticas abordam o planejamento urbano, direcionando seu foco para desenvolvimentos de uso misto, centros mais caminháveis e o cultivo da diversidade metropolitana. No entanto, esse livro nunca teve como intenção ser um manual obscuro para planejadores de cidades e mandarins governamentais. Em vez disso, deve ser lido como uma defesa robusta da vida urbana densa, com o objetivo de ressaltar sua importância para o florescimento humano geral. Este artigo postula que as utilidades das cidades vão muito além da dimensão econômica – elas se estendem na formação de laços humanos profundos e significativos, estimulando o avanço intelectual e espiritual, e desempenhando um papel importante no que torna os humanos, humanos. Revisitar “Morte e Vida de Grandes Cidades” nos permite enxergar como isso continua sendo verdade hoje e por que a vitalidade e o sucesso de nossas cidades são importantes para todos que se preocupam com o sucesso e o florescimento da espécie humana.

Times Square, em Nova York. Foto: DeviantArt

Dimensão econômica das cidades

Endereçando o óbvio primeiro, muito pouco do avanço material que a humanidade viu ao longo de sua existência seria possível se não fosse pela diversidade econômica que as cidades ajudam a cultivar. Se esse argumento está explícito em vários pontos ao longo de “Morte e Vida de Grandes Cidades”, está também implícito em todos os pontos do livro. Ao conectar milhões de pessoas em um só lugar, a cidade atua como um grande mercado de trabalho, permitindo que os empregadores encontrem talentos e que os trabalhadores ganhem seu sustento. As cidades traduzem os gráficos abstratos de oferta e demanda numa troca econômica tangível, permitindo que compradores e vendedores se recuperem em um só lugar e possibilitando a troca mutuamente benéfica. Em um capítulo intitulado “A necessidade de concentração”, Jacobs destaca o papel que altas densidades desempenham na geração de diversidade econômica, ou seja, em densidades baixas, negócios que oferecem certos bens especializados nunca poderiam se sustentar, porque simplesmente não haveria demanda suficiente. O cálculo é invertido em densidades mais altas. “Por sua natureza”, cita ela, “a metrópole oferece o que só as viagens seriam capazes de apresentar, qual seja, o desconhecido”. A concentração vai além do fornecimento de consumidores para os negócios. Os negócios não existem no vácuo, eles existem e dependem de uma rede intrincada de apoio de fornecedores, instituições financeiras, vendedores e outros interessados, todos os quais devem ser derivados de algum lugar. Conectar todas essas pessoas em um só lugar aumenta enormemente as eficiências e permite ainda a rápida transmissão de ideias e inovação. Essa ideia pode, ainda, ser conectada com a de Joseph Heinrich no capítulo 12 de seu livro de 2016, “The Secret to Our Success” (ou “o segredo para o nosso sucesso”). Existem muitas grandes mentes cujas descobertas transformaram o curso de nossa civilização (Edison, Kepler e Einstein, para dar alguns exemplos). Mas o progresso e o avanço não dependem apenas dessas grandes mentes, o que é necessário é a difusão e integração mais amplas dessas ideias na sociedade em geral. Os gênios sozinhos não são suficientes, como os exemplos antropológicos de Heinrich na Tasmânia demonstram; aquela ilha longamente desconectada, isolada do progresso e das ideias da sociedade mais ampla, regrediu significativamente durante o tempo em que esteve desconectada. As cidades, se permitidas, têm o efeito oposto, servindo tanto como cultivadoras quanto conectoras de novas ideias que, de outra forma, nunca teriam existido.

Contexto no qual o “Morte e Vida de Grandes Cidades” surgiu

Jacobs se esforça para mostrar por que as abordagens contemporâneas (naquele momento) ao planejamento urbano e às políticas estavam minando grandemente o papel das cidades na conexão e cultivo da diversidade econômica. Ela abre seu livro com a frase: “Este livro é um ataque aos fundamentos do planejamento urbano e da reurbanização ora vigentes”. Aqueles planejamento e reconstrução aos quais ela se referia em 1961, e até certo ponto ainda presentes até hoje, apesar da influência que suas obras tiveram, baseavam-se na crença de que as cidades, apesar de suas vantagens econômicas, não eram lugares desejáveis para se viver e eram, em vez disso, focos de vícios e criminalidade. Encabeçada pelo urbanista britânico Ebenezer Howard, a Cidade Jardim propôs uma alternativa ao crescimento urbano denso, designando usos do solo permitidos em áreas específicas, segregando usos residenciais, comerciais e industriais e, mais importante, suprimindo densidades para que nunca pudessem ficar acima de um certo ponto. Uma versão ligeiramente modificada dessas ideias veio na forma da Cidade Radiante (Ville Radieuse) de Le Corbusier (procure se você não estiver familiarizado – é impressionante!), e o modernismo em forma física rapidamente passou do meio acadêmico para o meio físico com a construção de vastas áreas de projetos habitacionais nos Estados Unidos, União Soviética e além. Acrescentando ao mal-estar da cidade, surge o movimento City Beautiful (Cidade Bonita), iniciado pela Exposição Colombiana de 1893, que começou um movimento de concentração de edifícios cívicos todos em um só lugar. Os defensores desses três tipos de novo urbanismo contra os quais Jacobs se posiciona raramente eram mal-intencionados, ela enfatiza ao longo do livro. No entanto, suas ideias baseavam-se em um mal-entendido fundamental do que leva à diversidade econômica bem-sucedida nas cidades.

Maquete do projeto da Cidade Radiante, de Le Corbusier. Foto: DeviantArt

Para que uma cidade tenha sucesso, cresça e prospere, é necessário o uso misto tanto do comércio quanto das pessoas, de modo que uma área possa se sustentar uniformemente ao longo do dia. Para que novas ideias e negócios surjam e se estabeleçam, a cidade deve conter uma variedade de unidades novas e antigas; unidades antigas permitindo que ideias economicamente arriscadas ou com baixos custos operacionais possam existir. Para que os bairros melhorem, a mudança deve ser gradual ao invés de catastrófica, garantindo que comunidades e bairros tenham tempo para se formar de maneira robusta. A densidade, mais do que qualquer outra coisa, importa, mas é essencial que essa diversidade exista de uma maneira que a cidade possa fazer uso. A densidade, a menos que acompanhada por usos mistos e quarteirões curtos que permitam a vida nas ruas e sustentem uma variedade de usos econômicos, significa muito pouco. Dessa densidade efetiva (ou seja, uma densidade que é eficaz porque é combinada com motivos para as pessoas se misturarem e interagirem com pessoas fora de seus círculos sociais habituais, mesmo que levemente), derivam todos os outros benefícios que as cidades conferem: comunidades fortes; ruas mais seguras, pois haverá muitas pessoas para vigiá-las; novos negócios, que podem aproveitar os recursos mais amplos da cidade; e a oportunidade de interação social espontânea e não planejada.

Em resposta aos controles sufocantes que foram impostos às nossas cidades na forma de planejamento, uso do solo, exigências de estacionamento e limites de densidade (entre outros), surgiu um movimento vital de defensores da habitação na era pós-Jacobs. O moderno movimento YIMBY, ou Yes-In-My-Backyard (“sim no meu quintal”), focou corretamente na redução dos controles e na garantia de que as cidades construam o máximo possível, onde for possível. Condomínios, arranha-céus, desenvolvimentos suburbanos se espalhando; novos desenvolvimentos em qualquer forma são bem-vindos pelos YIMBYs como um meio de reduzir os custos habitacionais e permitir que as pessoas aproveitem o potencial inexplorado que as cidades oferecem. E com razão: os defensores da habitação frequentemente se referem à chamada “teoria de tudo da habitação”, que liga a falta de habitação acessível a uma infinidade de problemas sociais, incluindo pobreza, falta de acesso à educação e degradação ambiental. Existem fortes razões para ser simpatizante desses argumentos: aumentar a acessibilidade habitacional beneficia não apenas aqueles que já estão nas cidades, mas também permite que milhares mais acessem os lugares onde podem ser mais produtivos, explorem e criem novas oportunidades. Mas Jane Jacobs oferece algo para nós YIMBYs também, mostrando-nos que nossas cidades oferecem muito mais do que apenas benefícios econômicos. Mas isso só acontece se o desenvolvimento urbano assumir uma forma particular.

Leia mais: Jane Jacobs: a trajetória depois de Morte e Vida das Grandes Cidades

Cidades como cultivadoras de diversidade

“O maior ativo de uma cidade”, declara Jacobs, é sua “própria totalidade em reunir pessoas com comunidades de interesse”. As cidades desempenham um papel central em cultivar a vida cívica, elas permitem que indivíduos com interesses semelhantes se encontrem e interajam espontaneamente de uma maneira que nunca é possível em densidades menores. Nos subúrbios, a interação humana é governada pela “convivência”, a exigência de que muito deve ser compartilhado entre os residentes, ou então eles devem se contentar com a falta de contato. Os pais participam das mesmas reuniões de pais e mestres, jogos de futebol e festas de aniversário. O padrão para a amizade nos subúrbios é necessariamente mais alto, pois implica um nível muito maior de compromisso e intimidade. “O resultado é inevitavelmente ou um ou outro; tem de ser assim, e ambos têm consequências penosas.” As cidades, e particularmente as calçadas movimentadas, permitem que outro tipo de vida cívica emerja: uma onde os humanos estão vagamente conectados e podem então escolher desenvolver esses relacionamentos mais adiante, se assim desejarem. Jacobs fornece exemplos vívidos de sua rua: os merceeiros locais a quem se pode pedir favores como guardar as chaves, indivíduos que cuidam dos filhos dos outros e os mantêm fora de problemas, “conectores” que conhecem muitas pessoas de forma superficial e, ao conectá-las, trazem o tecido político necessário para a autogovernança.

Greenwich Village, bairro onde Jane Jacobs morou em Nova York. Foto: Wikimedia Commons

Uma crítica dirigida à visão urbana de Jacobs é que ela é excessivamente cor-de-rosa. Não é o caso: em Nova York, em Londres, em Paris, continuam a existir bolsões de vida urbana com um forte tecido social subjacente, necessário agora mais do que nunca em uma era onde as pessoas estão cada vez mais introspectivas como resultado das redes sociais. Em torno das Grandes Cidades há outro modelo: áreas como o bairro de Clarendon, na Virgínia, são uma boa ilustração de como podemos aproveitar os benefícios da densidade e da concentração permitindo, ao mesmo tempo, que aqueles nos subúrbios aproveitem essas áreas vibrantes.

A cidade, observa Aristóteles no livro III de Política, “deve ser considerada não apenas pelo bem de viver juntos”, mas sim “pelo bem da ação nobre.” Jacobs é, em muitos aspectos, uma herdeira intelectual desse pensamento: apresentando por que a dimensão espacial importa na forma como vivemos, mostrando como a concentração e as calçadas movimentadas de uso misto cultivam mais diversidade, progresso e uma vida cívica forte, e depois destacando por que nem qualquer forma de planejamento será suficiente: apenas aquele que permite casos de uso espontâneo, que não é excessivamente regulamentado e, acima de tudo, que permite cruzamentos e caminhabilidade, será suficiente.

Leia mais: Podcast #78 | Decifrando a obra de Jane Jacobs

Jacobs e a defesa das cidades

A genialidade de Jane Jacobs é que a sua crítica em “Morte e Vida de Grandes Cidades” não se limita a isso. Esse trabalho literário e a riqueza com a qual sua prosa e descrições se unem para formar uma imagem da cidade realmente fazem dele uma obra da literatura, desafiando fundamentalmente o status quo e nos persuadindo em por que a vida urbana é tão desejável. Os americanos passaram a ver o Sonho Americano e a vida suburbana com uma cerca branca como sinônimos. Jacobs nos instiga a olhar além disso, a reconhecer que a cidade não é um lugar onde deveríamos nos resignar a viver por causa dos efeitos econômicos. Em vez disso, “Morte e Vida de Grandes Cidades” é um lembrete de como a diversidade das cidades é apenas um reflexo da individualidade e da singularidade inerente a cada um de nós.

Adam Louis Sebastian Lehodey estuda filosofia e economia no curso duplo entre a Universidade de Columbia e SciencesPo Paris. Tendo crescido entre Londres e Paris, ele é engajado com as questões de economia urbana, o papel da metrópole na economia global, governança urbana e cidades como ordem espontânea.

Artigo originalmente publicado em Market Urbanism, em junho de 2024.

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