Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Os sinistros de trânsito são uma das principais causas de morte no mundo.
29 de maio de 2023Estamos chegando ao final do Maio Amarelo, o mês de conscientização internacional para redução de mortes no trânsito. Os sinistros de trânsito são uma das principais causas de morte no mundo. Somente no Brasil, são 32 mil mortes por ano.
A ONU, em colaboração com diversos atores governamentais e não-governamentais, formulou uma agenda global para reduzir o número de óbitos viários, chamada Década de Ação pela Segurança no Trânsito (DAST), cuja primeira edição teve início em 2011.
Para entender como a DAST e a Visão Zero influenciaram a política de segurança viária no Brasil entre 2011 e 2020, foi realizado um estudo em municípios brasileiros com população superior a 200 mil habitantes. Esta é uma pesquisa da Fundación MAPFRE, com desenvolvimento técnico do Instituto Cordial.
Conversamos com Luis Fernando Villaça Meyer, Diretor de Operações do Instituto Cordial, sobre o impacto da primeira DAST da ONU no Brasil.
Caos Planejado: Para começar, você poderia nos contar o que é a Década de Ação pela Segurança no Trânsito da ONU?
Luis Fernando Villaça Meyer: É uma iniciativa para reduzir mortes no trânsito. Nós estávamos vendo no mundo um aumento muito grande das mortes e lesões graves no trânsito, especialmente em países do Sul Global. A 1.ª DAST da ONU foi de 2011 até 2020, mas ela já vinha sendo discutida desde 2006, com base em relatórios que mostravam a epidemia de mortes desta natureza.
A meta era reduzir em ao menos 50% as mortes decorrentes de sinistros viários. Embora o mundo não tenha alcançado a meta naquele período, o que inclusive levou a prorrogação para uma 2.a DAST até 2030, alguns países apresentaram uma melhora substancial durante o período da iniciativa. No Brasil, conseguimos reduzir em 34% o número de óbitos de trânsito quando comparado a 2010.
CP: De 2011 em diante, há uma tendência de redução das mortes no trânsito no Brasil. Podemos dizer que a DAST da ONU foi bem-sucedida no país?
LFVM: A ação da ONU com a DAST foi importante para que o governo federal começasse a chamar a atenção dos municípios para o tema. Mas esse número esconde algumas especificidades regionais importantes.
Algumas grandes capitais tiveram resultados muito bons, porque aderiram às recomendações globais e campanhas do governo federal, focando em segurança dos pedestres, redução de velocidade, combate ao ato de beber e dirigir, etc. Como essas cidades têm uma população muito grande, isso impacta bastante os indicadores estaduais e nacionais. No Ceará, por exemplo, Fortaleza é uma cidade que reduziu em mais de 50% as mortes no trânsito. Mas as outras cidades do estado não foram bem.
CP: O que é a Visão Zero?
LFVM: A Visão Zero é a ideia de que nenhuma morte no trânsito é aceitável. Dentro dessa visão, as estratégias estão representadas por uma pirâmide invertida.
Na ponta da pirâmide (ações menos prioritárias), está o uso dos equipamentos de proteção pessoal. Na base, está a eliminação do agente causador de risco (ações mais prioritárias). Por exemplo, se uma rodovia passa pelo meio da cidade, precisamos reduzir a velocidade máxima permitida ou fazer um desvio para que a pista dê a volta no centro urbano. Não faz sentido oferecer um equipamento de proteção, como um capacete, para quem precisa atravessar a rua.
Se não é possível eliminar o risco, podemos substituí-lo por algo menos danoso, colocando equipamentos de fiscalização de velocidade, por exemplo. Ou podemos usar intervenções de engenharia, como transformar a rodovia em um túnel subterrâneo. Também podemos usar ações de gestão administrativa, como campanhas de educação no trânsito. Mas a pirâmide está invertida justamente para não responsabilizar unicamente o usuário pelos sinistros de trânsito, pois todo ser humano pode cometer erros e a abordagem dos sistemas seguros de mobilidade está pensada para mitigar os efeitos desses erros, buscando evitar que sinistros graves e/ou fatais ocorram.
CP: É muito difícil obter dados sobre as vítimas de trânsito no Brasil?
LFVM: Os municípios, quando coletam informações sobre sinistros de trânsito, costumam ter dados mais granulares e detalhados que os nacionais, mas ainda são poucos os casos de boas bases de dados municipais. Nós ainda não temos um sistema nacional de sinistros no trânsito consolidado. Há a intenção de criar esse sistema através do Registro Nacional de Acidentes e Estatísticas de Trânsito (Renaest), mas essa iniciativa ainda é muito incipiente. No Brasil, ainda se usa recorrentemente os dados de mortes no trânsito do DataSUS. Mas quando entramos nesses dados, não há as mesmas especificações que um registro de trânsito teria, pois ele é preenchido por um órgão de saúde, e não de trânsito. Não há a informação de vítimas não fatais envolvidas no sinistro, informações mais detalhadas sobre o tipo de sinistro ou a geolocalização da ocorrência, por exemplo.
CP: Qual o panorama geral da violência no trânsito no Brasil?
LFVM: No Brasil, analisando as 155 cidades com mais de 200 mil habitantes, que corresponde a aproximadamente metade da população brasileira, estava havendo um aumento em números absolutos de mortes no trânsito até 2010, chegando a 20 mil por ano. Em 2010, começou a haver uma queda. As mortes de pedestres, por exemplo, diminuíram desde lá. Mas o que continuou aumentando foram as mortes de motociclistas, especialmente do sexo masculino e de cor parda. Mesmo com a melhora, estamos longe de zerar os números de mortes pela violência no trânsito.
CP: Como você mencionou, o Brasil conseguiu reduzir mortes, mas os motociclistas continuam sendo as maiores vítimas. Quais políticas públicas específicas para esse grupo deveriam ser adotadas?
LFVM: O aumento da frota de motocicletas já ocorre há mais de uma década. Mas por que a quantidade de motociclistas está aumentando? Porque o transporte público é um desafio, e a motocicleta muitas vezes é a alternativa de mobilidade a que as pessoas de renda mais baixa têm acesso. Com a explosão dos apps de entrega, a motocicleta também gerou uma possibilidade de trabalho com poucas barreiras de entrada.
É preciso melhorar as opções de mobilidade para segurar o aumento dessa frota, melhorar o desenho do sistema viário das cidades de forma a proteger mais esses usuários e é preciso melhorar a formação dos motociclistas. O curso prático do motociclista é muito fraco, muito abstrato e tem pouco a ver com a circulação na rua. Isso faz com que a gente tenha motociclistas muito jovens, a maioria homens, que não estão preparados para o trânsito quando começam a conduzir. Há várias pesquisas que mostram que homens jovens têm maior propensão ao risco, e permitir que essas pessoas circulem sem a devida orientação é um problema enorme.
CP: O que ainda precisa mudar para reduzir as mortes no trânsito no Brasil?
LFVM: Em muitos municípios, ainda há o paradigma de que as políticas de mobilidade devem buscar acelerar e dar fluidez ao trânsito, em detrimento da segurança das pessoas. Entretanto, diversas organizações nacionais e internacionais e o governo federal vêm elaborando materiais que buscam mudar essa mentalidade.
Esse paradigma, da fluidez com velocidade, carrega muitas falácias. Para começar, a fluidez não significa maior velocidade. Ninguém quer circular nas ruas e ser bloqueado por congestionamentos. Mas isso não significa que você precisa circular a 70 km/h. Quanto maior a velocidade dos carros, mais espaço ele ocupa nas vias, porque a distância entre um carro e outro precisa ser maior. Por isso, aumentar as velocidades máximas não diminui o tempo que as pessoas perdem no trânsito.
Várias capitais europeias estão reduzindo a velocidade máxima permitida para 50, 40, 30 km/h nos centros urbanos. O trânsito precisa fluir considerando todos os tipos de mobilidade, especialmente a mobilidade ativa (a pé ou de bicicleta) e o transporte coletivo. O que a população realmente precisa é ter acesso à mobilidade e ter segurança ao se locomover pela cidade, em qualquer meio de transporte.
Então, para efetivamente reduzir as mortes no trânsito no Brasil precisamos continuar transformando esse paradigma tanto nas políticas públicas quanto na mentalidade do cidadão, incorporando a abordagem dos Sistemas Seguros, de forma que nossos sistemas sejam concebidos priorizando a preservação da vida.
CP: Vocês realizaram um estudo em três etapas. A primeira foi analisar os dados de 155 municípios brasileiros. Em seguida, vocês enviaram questionários a 53 cidades e depois, conduziram entrevistas em 12 capitais. O que os questionários e as entrevistas revelam?
LFVM: As fases posteriores do estudo tiveram o objetivo de aprofundar tanto a caracterização da política de segurança viária municipal na primeira DAST (2011–2020) como da capilarização das abordagens dos Sistemas Seguros e da Visão Zero nas cidades brasileiras de médio e grande porte. O questionário focou na institucionalização da agenda da DAST e dos conceitos Sistemas Seguros e Visão Zero na política municipal, enquanto as entrevistas detalharam, principalmente, ações locais pela segurança viária, relações com outras organizações e perspectivas para a segunda DAST (2021–2030).
Além de conhecer as ações sugeridas, ficou evidente a importância de associá-las em uma política integrada. As cidades que se destacaram incorporaram ao menos três ou quatro ações relacionadas com o PNATRANS, o Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito. Por mais que algumas medidas sejam básicas e fundamentais, como a redução e adequação das velocidades máximas permitidas, não existe uma ação que sozinha resolva a maior parte do problema, o que reforça a importância da abordagem sistêmica e integrada dos Sistemas Seguros de mobilidade.
A maior revelação dos questionários e entrevistas são os exemplos de aplicações dos Sistemas Seguros adaptados ao contexto nacional e considerando as particularidades e desafios das cidades brasileiras. Esse detalhe é importante para validar a viabilidade da abordagem dos Sistemas Seguros no território nacional já que ela foi criada fora do Brasil com base em contextos urbanos muito diferentes dos nossos.
CP: Para finalizar, como o planejamento e uso do solo e do desenho das ruas podem mitigar esses problemas?
LFVM: O planejamento urbano deve se perguntar onde as pessoas moram, como elas acessam o transporte público, onde estão os centros de desenvolvimento econômico, quais são os pólos de atração de viagens. Com isso nós conseguimos reduzir distâncias e a quantidade de deslocamentos. Muitas pessoas pensam que as cidades brasileiras não tiveram planejamento, mas, na verdade, elas foram planejadas, só que para o carro.
Em qualquer cidade que você circule, o desenho das ruas é voltado para o automóvel. Isso é muito antigo. As ruas precisam ser desenhadas de forma diferente. Nós precisamos ter mais calçadas, mais espaço para circulação de bicicletas e transporte coletivo. Precisamos ter espaço para arborização e espaços de convivência. Uma rua desenhada assim é muito mais segura, mais sustentável e muito mais interessante para as pessoas.
Luis Fernando Villaça Meyer é diretor de operações no Instituto Cordial. Mestre em habitat e assentamentos humanos pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo com pesquisa sobre conflitos fundiários urbanos, graduado pela mesma instituição. Foi assessor do Departamento de Urbanismo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU) da Prefeitura de São Paulo, onde coordenou o desenvolvimento intersecretarial e participativo dos Planos Regionais das Subprefeituras entre 2015 e 2016 e foi membro do Conselho Municipal de Política Urbana.
Sobre a Fundación MAPFRE: Fundada em 1975, a Fundación MAPFRE é uma organização sem fins lucrativos, que tem o objetivo de materializar esforços para contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas e do progresso social. A instituição trabalha em cinco áreas de atuação, sendo elas: Prevenção e Segurança Viária, Ação Social, Seguros e Previdência Social, Cultura e Ação Social.
Sobre o Instituto Cordial: O Instituto Cordial é um centro de articulação e pesquisa independente que trabalha com ciência de dados, inteligência territorial e articulação intersetorial para fortalecer redes e basear tomadas de decisão públicas e privadas em dados e evidências. Trabalha com desafios sociais complexos, realizando projetos, pesquisas e iniciativas em diversos temas, como em saúde no Painel Brasileiro da Obesidade e em mobilidade no Painel Brasileiro da Mobilidade Segura e Sustentável.
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