Podcast #102 | Déficit Habitacional e a Fundação João Pinheiro
Confira nossa conversa com Frederico Poley sobre o déficit habitacional no Brasil e a Fundação João Pinheiro.
Para entender como poderíamos criar inovações disruptivas em lei e governança, primeiro precisamos encontrar uma área onde as tecnologias dominantes podem ser melhoradas.
7 de maio de 2014Na periferia de Estocolmo, vegetação e vândalos tomaram conta das antigas fábricas da Eastman Kodak. Compostas por estruturas metálicas frias, pouco a pouco estão ruindo e se entregando aos efeitos da natureza. As paredes estão cobertas por pichações coloridas (e às vezes vulgares). Nas palavras de um grafiteiro: é um “momento Kodak”.
Depois de sua fundação em 1888, Eastman Kodak tornou-se a principal empresa do ramo de fotografia por quase um século. Contudo, no início de 2012, a companhia que detinha um patrimônio de US$ 30 bilhões de dólares e 140 mil funcionários entrou com pedido de falência.
A Kodak foi vítima da inovação — um processo que Joseph Schumpeter chamou de “vento perene da destruição criativa”. A Kodak poderia dominar o mercado somente até que uma alternativa melhor e mais estável aos seus serviços surgisse. Uma vez que esta alternativa — a fotografia digital — surgiu, o destino da Kodak já estava selado. A gigante das câmeras lentamente perdeu mercado para entrantes como Sony e Nikon até que, de uma hora para outra, “todo mundo” precisava de uma câmera digital e as Kodak eram direcionadas para feiras de de antiguidades.
Como isso acontece? Christian Sandström, um especialista em tecnologia do Ratio Institute, localizado na Suécia, argumenta que as grandes inovações seguem um caminho comum.
Tecnologias disruptivas começam em “mercados marginais”, e normalmente são piores em quase tudo. As primeiras câmeras digitais eram grandes, caras, pesadas e tiravam fotos de baixa qualidade. Contudo, uma inovação possui alguma vantagem em relação à tecnologia dominante: no caso das câmeras digitais, a conveniência de não mais utilizar os rolos de filmes. Essa vantagem permite que a inovação sirva um nicho de mercado. O pequeno grupo de early adopters (os primeiros adeptos) é, na maioria das vezes, ignorado por uma firma estabelecida como a Kodak já que a tecnologia dominante controla o mercado de massa.
Mas a nova tecnologia não permanece na margem para sempre. Eventualmente, seu desempenho aumenta e passa a competir com a tecnologia dominante. Câmeras digitais já tinham dispensado o uso do filme; com o tempo, tornaram-se capazes de resolução melhor do que as câmeras antigas, com uso mais fácil e, além disso, mais baratas. A Kodak percebeu essa tendência e tentou entrar no mercado digital, mas era tarde demais. A inovação varre o mercado e a firma dominante se torna vítima dos ventos da mudança tecnológica.
A inovação disruptiva torna o mundo melhor por desafiar monopólios como a Kodak. Ela alcança praticamente todos os mercados, com exceção de um: lei e governança.
O direito consuetudinário britânico, a democracia parlamentar, o padrão-ouro: parece estranho chama-los de “tecnologias”. Contudo, W. Brian Arthur, um economista do Santa Fe Institute e autor do livro The Nature of Technology (tradução, A Natureza da Tecnologia), sugerem que são. Ele escreve que “organizações empresariais, sistemas jurídicos, sistemas monetários e contratos compartilham as mesmas propriedades da tecnologia”.
Tecnologias canalizam fenômenos para um propósito específico. Embora possamos entender que as tecnologias deveriam canalizar algo físico, como elétrons ou ondas de rádio, os sistemas de lei e a governança canalizam o comportamento e fenômenos sociais. Então, uma pessoa poderia chamar o direito consuetudinário britânico ou a democracia parlamentar de “tecnologias sociais”.
A Inovação em “tecnologia social” pode ainda parecer um exagero. Mas as pessoas, outrora, também consideraram o controle quase total da fotografia por parte da Kodak como normal (em alguns países a palavra usada para “câmera” é “Kodak”). No entanto, logo depois que a inovação disruptiva ocorre, parece obvio que a Kodak era inferior e que a mudança era positiva. Nossos sistemas legal e político, como tecnologias, são igualmente abertos à inovação disruptiva. É fácil tomar por certo nossas tecnologias sociais porque o mercado para lei e governança é tão raramente perturbado por inovações.
Para entender como poderíamos criar inovações disruptivas em lei e governança, primeiro precisamos encontrar, como a Nikon fez com a Kodak, uma área onde as tecnologias dominantes podem ser melhoradas.
Ao redor do mundo, sistemas de lei e governança falham na tentativa de providenciar inúmeros serviços aos seus mercados. Em muitos países em desenvolvimento, a maior parte da população vive na informalidade.
Seus negócios não podem ser registrados. Seus contratos não podem ser levados ao tribunal. Eles não conseguem licença para construir uma casa. Muitos vivem em constante medo e perigo, dado que os sistemas de governança não conseguem oferecer nem mesmo segurança básica. A possibilidade de começar um negócio formal, construir uma casa, ir para escola, viver em uma comunidade segura — todas essas “funções” das tecnologias sociais estão faltando para bilhões de pessoas.
Esses fracassos da tecnologia social geram pobreza e violência generalizada. Negócios têm sucesso porque são administrados por “camaradas” dos poderosos e são protegidos da competição pelo sistema legal. As redes de cooperação necessárias para o crescimento econômico não podem se formam em ambientes tão restritos. Os pobres não podem se tornar empreendedores sem as ferramentas legais. As inovações nunca chegam ao mercado. As firmas e as tecnologias dominantes não são desafiadas por novas empresas.
Aqui está o nosso nicho de mercado.
Se pudéssemos encontrar uma forma melhor de oferecer um ou alguns desses serviços (mesmo se não pudéssemos oferecer tudo melhor do que o sistema político dominante), podemos nos encontrar na mesma posição da Nikon antes do colapso da Kodak. Nós poderíamos alavancar nosso nicho de mercado para algo muito maior.
Um movimento crescente ao redor do mundo para a construção de novas comunidades nos oferece uma oportunidade de hackear nossa tecnologia social. Uma nação-sede cria múltiplas pequenas jurisdições com sistemas de lei e governança novos e independentes. Os cidadãos são livres para imigrar para a jurisdição de sua escolha. Como qualquer outra tecnologia, essas cidades startup competem para oferecer serviços novos e melhores — nesse caso, oferecer aos cidadãos serviços que desejam e que necessitam.
Uma nova região sediando uma cidade startup pode ser pioneira com leis ambientais ou tributárias diferentes. Outra pode oferecer um ambiente regulatório preparado especificamente para empresas na área de finanças ou universidades. Outra ainda poderia tentar um novo modelo para o financiamento de assistência social.
As cidades startup são uma alternativa poderosa às arriscadas, difíceis e improváveis reformas nacionais. As cidades startup são como protótipos de baixo custo para novas tecnologias sociais. Tecnologias sociais positivas originadas nessas cidades podem, então, serem aplicadas em nível nacional.
Contudo, se tecnologias ruins levarem ao fracasso de uma determinada região, não arriscamos a sua aplicação em nível nacional. As pessoas podem facilmente abandonar uma cidade startup — efetivamente, decretando a falência do projeto. Se uma nação escolhe utilizar capital privado para infraestrutura e outros serviços, os contribuintes podem evitar pagar a conta pela má ideia de outrem. Cidades startup também aumentam a voz dos cidadãos no processo democrático, já que eles tem a opção de saída.
Analisando nosso nicho de mercado, uma cidade startup em um país em desenvolvimento poderia oferecer leis de incorporação simplificadas e tribunais confiáveis para cidadãos pobres que querem se tornar empreendedores. Outro projeto poderia focar na construção de locais seguros para comércio e moradia testando pilotos na área de polícia e segurança. Na verdade, muitas dessas funções poderiam (e deveriam) ser combinadas em um projeto único de uma cidade startup.
Como qualquer boa startup de tecnologia, as cidades startup seriam pequenas e ágeis no início. Elas não seriam capazes de competir em muitas áreas até então sob o controle do sistema dominante de lei e governança. Contudo, contanto que as pessoas são livres para entrar e sair, as cidades startup vão crescer e melhorar com o passar do tempo. O que começou como uma ideia pequena e inexpressiva para servir a um nicho de mercado pode gerar uma mudança de paradigma em tecnologias sociais.
Muitos países já começaram a desenvolver projetos de cidades startup, e muitos outros estão considerando a ideia. Os primeiros estágios desse movimento serão quase certamente tão inexpressivos quanto as câmeras digitais antigas. Nações com olhos no futuro investirão de forma inteligente em suas próprias tecnologias sociais disruptivas, testadas e consolidadas nas cidades startup. Outras nações — provavelmente as ricas e estabelecidas — ignorarão essas “reformas de nicho de mercado” dos países em desenvolvimento. E elas podem acabar como a Kodak — superadas por novas tecnologias sociais desenvolvidas em países pobres.
O hacker encontra vulnerabilidades na tecnologia dominante e as utiliza para criar algo novo. De certa forma, toda a inovação disruptiva é uma forma de hack, visto que confia em um nicho — uma rachadura na armadura — da tecnologia dominante. Nossos sistemas de lei e governança não são diferentes. As cidades startup são a inovação disruptiva aplicada à tecnologia social. Seu futuro é promissor, e é só lembrarmos do caso da Kodak — aquele monopolista monolítico e invencível — para vislumbrarmos um mundo de possibilidades.
Texto publicado originalmente em FEE em 9 de julho de 2013. Traduzido por Matheus Pacini, com revisão de Anthony Ling.
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