Por que o uso do transporte público em Curitiba ainda é tão baixo?
Conhecida por seu inovador sistema de transportes, Curitiba apresenta hoje dados que não refletem essa reputação. Neste artigo, procuramos entender o porquê.
Os pedestres totalizam 45% mortos em acidentes de trânsito nas vias do município de São Paulo, ou seja, um índice desproporcional a sua presença cotidiana nas ruas da cidade.
19 de junho de 2015As últimas estatísticas sobre os acidentes de trânsito divulgados pela CET na semana passada acusaram uma subida geral nos índices de acidentes fatais no município de São Paulo, com destaque especial aos acidentes com ciclistas. Este fato atraiu a atenção da mídia e do meio técnico, em sua maioria atentos ao intenso processo de implantação de ciclovias do atual programa cicloviário da Prefeitura de São Paulo, apesar de apenas dois do total de 47 terem ocorrido nas recentes ciclovias implantadas.
Este fato acabou por encobrir as outras informações contidas neste relatório e igualmente graves como as referentes à subida do número de acidentes fatais com motociclistas e principalmente com pedestres, os mais vulneráveis usuários da via, repetindo e intensificando ainda mais uma situação que se repete na cidade há muitos e muitos anos.
Mesmo considerando o alto número de viagens a pé que são realizadas diariamente em São Paulo dá arrepios ao confrontarmos seus números aos de Nova York:
A abissal diferença entre eles — em São Paulo há 3,5 vezes mais mortes por atropelamentos do que Nova York — deixa exposto que há ainda muito a ser feito por aqui para melhorar as condições da Mobilidade a Pé, não só em desenho e engenharia urbana, mas principalmente quanto à mudança radical de mentalidade do poder público e da sociedade em geral, no sentido a eliminar de vez a cultura corrente da banalização e da aceitação da ocorrência dos atropelamentos como fato inevitável atribuindo sua culpa sempre ao pedestre. Afinal trata-se de valores relativos à perda de vidas humanas em situações cotidianas que poderiam perfeitamente ser evitadas desde que a Mobilidade a Pé recebesse, na distribuição do espaço e do tempo dos espaços públicos urbanos, a parte proporcional a sua representatividade como forma de mobilidade cotidiana na matriz modal de deslocamentos da cidade totalizada em um terço de todas as viagens diárias.
Entretanto, o que o documento recém publicado pela Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo — CET “Acidentes de Trânsito Fatais — Relatório Anual — 2014” aponta, é que os pedestres totalizam 45% mortos em acidentes de trânsito nas vias do município de São Paulo, ou seja, um índice desproporcional à sua presença cotidiana nas ruas da cidade, deixando mais do que visível que as condições oferecidas pelos seus espaços públicos ao caminhar refletem o desprezo e a pouca a importância dada a ele, pouco importando sua massiva presença.
Assim, os gráficos e tabelas que fazem parte deste relatório apontam o pedestre como o mais vulnerável usuário da via, justamente aquele que tem assegurada por lei a sua incolumidade em relação a todos os outros usuários (parágrafo 2º do Art. 29 do CTB), como a maior vítima do trânsito paulistano há vários anos.
Para intensificar ainda mais esta chocante e dramática situação, a morte por atropelamento já é apontada como a maior causa da morte de crianças de 0 à 14 anos em São Paulo. (notícia divulgada pelo portal G1 de notícias em 11/05/2015, amplamente replicada nas redes sociais).
Desde o início deste relatório o atropelamento aparece como o acidente que mais mata no trânsito da cidade de São Paulo: 538 atropelamentos com 555 óbitos, ou seja, mais de uma pessoa foi morta em alguns deles. Estes números representam 45% do total de acidentes de trânsito fatais e 44,4% das mortes em acidentes de trânsito, porcentuais semelhantes.
Se grosseiramente compararmos com a representatividade das viagens a pé na matriz modal de viagens a pé da cidade, em torno de 33%, de acordo com os perfis de mobilidade apontados pela ANTP em 2012, podemos relacionar a cada 1% de viagens 1,3% de atropelamentos, e a partir daí concluirmos que o ato cotidiano da caminhada em São Paulo é inseguro e requer a imediata aplicação de políticas públicas que revertam esta situação de inseguridade.
Se, por outro lado, utilizarmos a mesma linha comparativa e relacionarmos os outros índices de incidência de vítimas fatais constituídos pelos motociclistas 35,2%, somados aos motoristas ou passageiros em veículos 16,6%, totalizando 51,8%, com os mesmos perfis de representatividade destes tipos de viagens de acordo com o Perfil de Mobilidade da ANTP, agrupados pela soma dos porcentuais de viagens motorizadas individuais (motociclistas e motoristas e passageiros de automóveis), com os porcentuais das viagens por transporte coletivo (motoristas e passageiros de transporte coletivo), obtém-se o total aproximado de 64% das viagens, ou seja a cada 1% de viagem corresponde a 0,81% de vítima fatal, em situação menos desfavorável na comparação viagem / vítima do que os pedestres.
Analisando os números dos tipos de vítimas mortas e feridas fica ainda mais reforçada a situação de fragilidade do pedestre enquanto vítima de atropelamentos: para os 555 registros de óbitos em atropelamentos, somente 70 registros apontaram pedestres sobreviventes, lembrando que por haver tido gravidade de registro de vítima fatal no acidente, certamente pedestres sobreviventes tem probabilidade de apresentarem ferimentos e possíveis sequelas. Na sequência aparecem nesta mesma relação os ciclistas, com 47 óbitos e somente 1 ferido, motociclistas com 440 mortes e 149 feridos e por último motoristas/passageiros onde o número de mortos e feridos, 207 e 221, respectivamente é quase igual.
A análise territorial do mapeamento dos locais dos atropelamentos dá destaque à Área Central de São Paulo, que concentra mais de 2 milhões de viagens a pé por dia. Em muitos dos demais registros de mortes de pedestres verifica-se uma situação espacial linear, aparentemente em característica em alinhamento sequencial, certamente muitas ao longo de corredores que não apresentam condições urbanas adequadas a acomodar os fluxos a pé que os percorrem diariamente; isto ocorre simplesmente porque na divisão dos espaços e dos tempos urbanos da cidade nunca privilegiam a mobilidade a pé, mesmo em locais com alta concentração de pedestres como corredores de transportes e sub centros regionais.
A regionalização dos atropelamentos por gerência operacional da CET (as GETs) expõe tanto a região central da cidade, onde apesar de ocorrer maior concentração de viagens a pé não é dada a prioridade proporcional a sua representatividade, como as regiões situadas nas franjas da cidade, onde se anda muito a pé e quase não há infraestrutura (calçadas) para dar o mínimo de apoio à caminhada.
Quanto ao veículo que mais atropela, o automóvel participa em praticamente a metade dos atropelamentos, índice inferior a sua representatividade na frota veicular da cidade. Surpreendentemente, os ônibus comparecem com um pouco mais de 25% das mortes de pedestres, apesar de apresentarem proporção bem inferior na composição da frota veicular que roda diariamente nas ruas paulistanas. Este fato aponta para a necessidade de programas urgentes de sensibilização de seus motoristas quanto à fragilidade da Mobilidade a Pé e que o passageiro que transportam no interior de seus veículos é antes de tudo um pedestre. Esta última observação também vale para os planejadores, projetistas e operadores dos sistemas de transportes públicos da cidade para que tenham em foco a mesma coisa.
Outro fato que chama a atenção é a presença da bicicleta na ocorrência de atropelamentos fatais, contrariando a crença comum entre seus usuários cotidianos de que ela não mata. Mesmo que sua representatividade seja mínima, 0,4% ou 2 atropelamentos em 538, pela primeira vez no relatório de acidentes fatais emitido pela CET há o registro de bicicletas como veículo neles envolvidos.
Outro fato que chama a atenção na ocorrência das mortes de pedestre é o fator velocidade veicular, tanto a regulamentada como a praticada. Isto fica evidente ao se constatar que os dias da semana de maior ocorrência de atropelamentos fatais são o sábado e o domingo, quando o fluxo veicular mais reduzido permite que os veículos circulem em velocidade mais alta.
A planilha que apresenta os atropelamentos por dia e período do dia, associa a maior intensidade de das mortes nos períodos da tarde, noite e da madrugada e acrescenta ao fator velocidade o fator visibilidade e luminosidade ao concentrar as ocorrências nos períodos onde as condições de iluminação ficam reduzidas, indicando a urgência em se investir na iluminação dos espaços urbanos de caminhada.
Os dados que serão analisados a seguir são os que nos mais causam comoção porque se relacionam ao perfil sócio econômico das vítimas deixando ainda mais exposto o caráter de vulnerabilidade que está vinculado aos que utilizam os espaços públicos das vias exercendo a mais primordial forma de mobilidade. A partir destes dados, as vítimas de atropelamento deixam de ser números estatísticos e assumem o perfil de pessoas com quem diariamente cruzamos nossos caminhos, para quem dizemos bom dia ou dirigimos um olhar carinhoso ou solidário.
Por vários motivos que não serão abordados aqui, são os homens que mais morrem no trânsito de forma geral e isso também vale para as vítimas de atropelamentos. Entretanto de todos os tipos de acidentes, o atropelamento é onde há a mais massiva presença feminina, na proporção de apenas 2,6 para 1 enquanto que para as outras modalidades de acidentes essa proporção é maior, 5,4 para 1 quando a vítima é motorista/passageiro, 8,7 quando é motociclista e 10,75 se ciclista.
Na leitura da ocorrência dos atropelamentos de acordo com a faixa etária da população é onde se intensifica a situação de iniquidade decorrente das mortes causadas por atropelamento no município de São Paulo. É o tipo de acidente que mais mata crianças na primeira infância com 15 ocorrências na faixa de 0 a 9 anos, enquanto que para os demais tipos de acidentes os números praticamente não pontuam. Na faixa dos 10 aos 19 anos este número duplica, chegando aos 33. Nas faixas etárias subsequentes o número de fatalidades sobe e se mantém como o tipo de acidente de trânsito que mais mata pessoas com mais de 40 anos, enquanto que a representatividade dos demais tipos de acidentes de trânsito como causa de óbito praticamente desaparece. Mais um motivo para se trabalhar políticas que atinjam o pedestre em todas as suas faixas etárias porque é o acidente de trânsito que mais mata durante toda a vida do usuário do sistema viário.
A relação das fatalidades por faixa etária praticamente reproduz a situação da distribuição etária dos usuários do transporte a pé de acordo com a Pesquisa OD do Metrô como pode ser constatado na tabela abaixo:
A escolaridade das vítimas fatais de atropelamentos se situa nos níveis preliminares na maioria (51,2%) entre o Fundamental I e Fundamental II, 30% com ensino médio completo e nem 10% com ensino superior. Conforme ocorre com a faixa etária esta situação mais uma vez reproduz também o perfil do Modo a Pé obtido na Pesquisa OD do Metrô.
A ocupação das vítimas de atropelamentos é decorrência de seu perfil sócio econômico, expondo como maior vítima justamente os mais vulneráveis, aposentados e pensionistas, 11,2% do total, onde pesa a faixa etária e limitações físicas impostas a esta condição. Se retornarmos à planilha que expõe a faixa etária dos pedestres, verificaremos que o perfil da vítima não corresponde a ele mas sim à categoria que vem a seguir que são os estudantes perfazendo 8,8%.
As demais profissões declaradas, por exemplo, ajudante, pedreiro mecânico, empregada doméstica, se enquadram majoritariamente no perfil de pouca formação escolar da maioria das pessoas que utilizam a caminhada como modo de transporte. Acrescenta-se a isso também ao desgaste físico e estresse decorrentes de suas atividades diárias e às condições de tratamento urbano e do tráfego dos locais por onde estas pessoas caminham.
É pensamento recorrente entre muitos planejadores e o meio técnico em geral que somente ações educativas seriam capazes de reverter o sombrio cenário das fatalidades no trânsito, em especial as que envolvem o usuário pedestre e que atualmente assumem dados numéricos assustadores dignos de uma situação de guerra civil. Com certeza elas são mais do que necessárias, e se faz urgente a introdução da disciplina “Educação de Trânsito”, ou “Cidadania” na rede escolar, não para criar pedestres submissos e tementes à prioridade dos meios motorizados, mas sim para estruturar comportamentos de compartilhamento harmonioso e consciente dos espaços públicos das cidades, com a devida prioridade aos mais vulneráveis.
Os números deste último relatório da CET (2014) apontaram também a necessidade de sensibilizar alguns seguimentos específicos de condutores de veículos motorizados, em especial motoristas de ônibus, assim como informar aos ciclistas de que um confronto com bicicleta pode sim levar ao óbito, para que não haja intensificação do pouco número de mortes de pedestres por elas causados .
Entretanto, além das ações educativas primordiais, se faz urgente reverter os atuais paradigmas nas prioridades assumidas na maioria das ações políticas de uso dos espaços públicos urbanos de mobilidade, de forma a atribuir à Mobilidade a Pé seu devido e justo papel na ocupação destes espaços.
Para isso se faz necessária a revisão de importância de usos da rede viária paulistana hierarquizando sua importância sob a ótica de sua importância para os fluxos a pé, não fluxos veiculares, como ocorre atualmente, respeitando suas características, seus caminhos e considerando suas concentrações de interesse, de forma a se estabelecer uma Rede Estratégica de Mobilidade a Pé. Nesta rede estratégica as condições do tráfego veicular deverão estar submetidas às condições primordiais de apoio à caminhada tais como:
• Tratamento de tráfego acalmado, velocidade veicular máxima de 30 Km/h nas vias de fluxo veicular mais intenso;
• Regulamentar a 40 km/h os corredores de transporte coletivo — tanto a faixa de ônibus como as demais faixas veiculares;
• Implantação das faixas de travessia de pedestres lineares, nunca deslocadas, respeitando as linhas de desejo de travessia;
• Ciclos semafóricos justos com tempos de travessia adequados ao perfil de quem os utiliza — por exemplo dedicando mais tempo em travessias próximas a hospitais, escolas, bairros habitados por população de faixa etária elevada;
• Iluminação, arborização e cobertura vegetal adequados à caminhada;
• Calçadas que respeitem as necessidades da caminhada tanto em sua largura como em regularidade de superfície e revestimento;
• Sinalização informativa adequada às características da mobilidade a pé;
• Mobiliário urbano adequado e bem posicionado;
• Criação de espaços de convivência em áreas residuais.
Somente uma política pública de valorização da Mobilidade a Pé será capaz de reverter a sombria realidade da inadequação de São Paulo para quem caminha e devolver à população uma cidade com dimensões mais humanas.
ANTP — Associação Nacional de Transportes Públicos — “Sistema de informações da Mobilidade — 2012”
CET — Companhia de Engenharia de Tráfego — “Acidentes de Trânsito Fatais — Relatório anual 2014”;
Malatesta, Maria EB — “Andar a pé: um modo de transporte para a cidade de São Paulo” — dissertação de mestrado — FAUUSP, 2007;
Mobilize Brasil — Mortes no Trânsito — Comparação São Paulo Nova York, 2012.
Maria Ermelina Brosch (Meli) Malatesta é doutora em Mobilidade a Pé e Cicloviária e presidente da CT Mobilidade a Pé e Acessibilidade da ANTP.
Este artigo foi publicado originalmente no site Mobilize e publicado no Caos Planejado com autorização da autora.
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