Favela Xpress: reconectando comunidades ao comércio
Foto: Wikimedia Commons

Favela Xpress: reconectando comunidades ao comércio

As compras online já fazem parte do cotidiano de muitos brasileiros. Porém, nas favelas as entregas têm limitações importantes. Para resolver esse problema, foi criada a Favela Xpress.

31 de julho de 2025

Grande parte da minha carreira profissional foi dedicada não apenas à tecnologia, mas à logística urbana. Passei a maior parte da última década em empresas que utilizam softwares para transportar mercadorias e pessoas pelas cidades de forma mais eficiente. É um campo de atuação que eu conheço bem, então quando ouvi falar da plataforma brasileira de entregas Favela Xpress, ela despertou o meu interesse.

O Brasil já conta com fornecedores de serviços de entrega sob demanda e entrega até a porta há alguns anos. A Favela Xpress, no entanto, atua em comunidades de favelas, que estão desconectadas da economia formal ao seu redor.

São territórios que se desenvolveram à sombra da negligência. A infraestrutura que eles possuem — habitação, vias, etc. — foi construída de forma dissociada dos sistemas municipais.

Para entender a profundidade dessa desconexão e por que a Favela Xpress é tão importante, no entanto, é necessário um breve apanhado histórico.

Leia mais: Podcast #68 | Favela Xpress e a logística de entregas nas favelas

O que são as favelas e como elas surgiram?

As favelas estão presentes em todas as grandes cidades brasileiras, e muitas foram originalmente fundadas por ex-escravizados após a abolição em 1888. Essas comunidades tornaram-se bairros da classe trabalhadora e cresceram ao longo do tempo, à medida que pessoas migravam do campo em busca de melhores condições de vida.

Os primeiros moradores das favelas eram ocupantes informais. Construíram suas casas em terras públicas e, embora os governos municipais não necessariamente os impedissem, eles também não ofereciam qualquer tipo de apoio. Hoje, muitos residentes ainda não possuem a escritura oficial do terreno onde suas famílias vivem (em alguns casos, há mais de um século).

Historicamente, as favelas foram erguidas sem acesso às redes municipais de esgoto ou energia elétrica. Não havia fiscalização de obras e os planejadores urbanos nunca providenciaram as vias de acesso necessárias. A infraestrutura que existe, em muitas dessas comunidades, foi construída aos poucos pelos próprios moradores.

Diante das condições dessa infraestrutura, fazer entregas nesses locais pode ser bastante desafiador. As ruas se tornam becos ou escadarias, inviabilizando o acesso de carros. Além disso, muitas dessas áreas nem sequer constam em mapas oficiais. Nem mesmo o Google conseguiu cartografar completamente as vielas de cada favela. Como consequência, muitas residências nem possuem um endereço formal.

Isso acabou excluindo os moradores das favelas do boom do e-commerce no Brasil, pois muitas vezes é impossível realizar as entregas de compras online. Instruções como “a casa azul, quatro ruas acima da entrada, do outro lado daquele beco perto do Gerson que vende salgadinhos na terça” são, no mínimo, imprecisas.

Tudo isso se complica ainda mais devido à dimensão de muitas favelas. Embora a maioria ocupe poucos quilômetros quadrados, essas áreas costumam apresentar densidades populacionais extremamente altas. A favela da Rocinha, no Rio de Janeiro — a maior do país em termos populacionais — abriga uma estimativa de 150 mil a 300 mil pessoas em menos de 2,5 km². Isso equivale de duas a quatro vezes a densidade populacional de Manhattan, em um território construído sem autorização formal ou suporte.

Como morador da favela de Paraisópolis, em São Paulo, foi nesse contexto que Giva Pereira, fundador da Favela Xpress, cresceu. E após uma entrega de livros escolares não conseguir chegar até a sua casa, ele decidiu enfrentar esse problema por sua comunidade e tantas outras semelhantes espalhadas pelo Brasil.

Favela de Paraisópolis, em São Paulo. Foto: Wikimedia Commons

Favela Xpress conecta as favelas ao e-commerce

A Favela Xpress faz parcerias com empresas como Amazon e Mercado Livre para realizar entregas até a porta de casa. Moradores das favelas fazem seus pedidos online como qualquer outra pessoa, e seus pacotes são enviados a um centro de distribuição da Favela Xpress. De lá, os itens são organizados por um entregador que realmente mora naquela comunidade (e portanto sabe onde ficam os locais).

O modelo de contratação da empresa é importante por dois motivos. Primeiro, porque os moradores conhecem a disposição física do território, o que permite que a Favela Xpress realize entregas que outros operadores não conseguem concluir. Segundo, porque a empresa gera empregos locais ao mesmo tempo em que proporciona acesso ao e-commerce.

Claro que apenas contar com pessoas que conhecem o caminho não é uma solução plenamente escalável. Por isso, a empresa também está ajudando a implementar o sistema Google Plus Codes.

O Google Plus Codes é um sistema de endereçamento baseado em coordenadas geográficas. Esse projeto, de open source (código aberto), foi originalmente criado pelo escritório de engenharia do Google em Zurique como uma forma de identificar locais físicos mesmo sem um endereço formal.

A Favela Xpress distribui placas com os códigos para que os entregadores possam localizar as residências por meio do Plus Code. Até o momento, dezenas de milhares de clientes da empresa, em mais de seis favelas, já utilizam esse sistema para receber suas encomendas.

Site do Google Plus Codes

A Favela Xpress está atuando como uma ligação fundamental entre as favelas e o restante da economia brasileira. E antes de subestimar a relevância desse trabalho, vale lembrar que não se trata apenas de poupar alguém de uma ida ao supermercado.

Por diversos motivos, os bens de consumo no Brasil podem ser muito caros. A expansão do varejo online ajudou a reduzir esses custos nos últimos anos, mas o acesso não tem sido igual em todo o território nacional. Muitos produtos disponíveis online — como livros escolares, por exemplo — são inacessíveis ou absurdamente caros fora da internet. Conectar essas pessoas ao e-commerce é uma etapa essencial para melhorar suas condições materiais.

Segundo Giva, o plano é simplesmente continuar crescendo. Ele quer expandir para comunidades de todo o país, replicando o modelo desenvolvido em Paraisópolis. Ainda há um longo caminho pela frente, mas todos os sinais indicam que o plano está funcionando e que agora é uma questão de continuar executando com consistência.

Panoramas e lições gerais

Embora “favela” seja um termo brasileiro, o fenômeno não é exclusivo do Brasil. Cidades em toda a América Latina, África e Sudeste Asiático abrigam populações vivendo em condições semelhantes e pelos mesmos motivos.

As cidades, para usar uma expressão de Ed Glaeser, são motores de oportunidades. Elas oferecem um escape da pobreza rural e frequentemente funcionam como trampolins para a ascensão à classe média. Mas para as mais de um bilhão de pessoas que vivem em comunidades como favelas ao redor do mundo, a segregação física, social e institucional cria barreiras entre elas e as oportunidades urbanas. Qualquer iniciativa que consiga atravessar esse abismo — como a Favela Xpress — tem o potencial de ajudar muitas pessoas, especialmente aquelas que mais precisam.

Ampliando ainda mais o olhar, há lições aqui até mesmo para cidades do chamado “mundo desenvolvido”.

A oportunidade não é distribuída de forma equitativa, e nenhuma decisão de projeto é neutra em seus valores. Há um debate antigo sobre isso nos campos jurídico, político e social. O que talvez nos falte é uma compreensão mais profunda de como isso também se manifesta no ambiente construído.

Leia mais: Gestão urbana e o desafio de juntar a cidade formal e a informal

Histórias como a da Favela Xpress são importantes não apenas porque representam a superação de uma barreira, mas porque nos lembram, em primeiro lugar, que essa barreira existe.

Elas também servem como lembrete de que, embora as cidades possam ser plataformas para a prosperidade material, mesmo quando elas funcionam bem, não são perfeitas. A oportunidade nunca é igualmente distribuída, e nem toda comunidade é automaticamente incluída nesse progresso. Portanto, enquanto buscamos corrigir os erros que foram (literalmente) construídos nas fundações dos lugares onde vivemos, devemos também manter um olhar crítico sobre a forma como seguimos construindo nossas cidades daqui pra frente.

Artigo publicado originalmente em Urban Proxima, em julho de 2024.

Para saber mais sobre como a exclusão das favelas no planejamento urbano tem afetado milhões de pessoas e como podemos construir caminhos melhores, conheça o curso “Do Planejamento ao Caos“.

Sua ajuda é importante para nossas cidades.
Seja um apoiador do Caos Planejado.

Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.

Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.

Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.

Quero apoiar

LEIA TAMBÉM

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.