Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Confira como as grandes cidades encaram a pichação e entenda quais são as maneiras alternativas de se lidar com essa questão.
12 de maio de 2018Qual é a diferença entre pichação e graffiti? Do ponto de vista da lei, pichação é a pintura feita sem a autorização do proprietário ou gestor do imóvel, enquanto o graffiti é a prática autorizada. Do ponto dos indivíduos, entretanto, a fronteira entre as duas classificações é bastante porosa — em geral, os grafiteiros são ou já foram pichadores em algum momento, motivo pelo qual prefiro usar os termos aglutinados: pichação/graffiti e pichadores/grafiteiros. Em linhas gerais, para o Estado o que está em jogo na classificação é a questão do direito à propriedade. Para os pichadores/grafiteiros, são as questões estéticas e de reconhecimento.
Também podemos enxergar a pichação/graffiti de uma ótica mais ampla: a vida urbana. Em “As Grandes Cidades e a Vida do Espírito”, livro clássico na área de antropologia urbana, George Simmel encara as grandes cidades como o palco principal do espírito calculador, do hábito de planejar o dia. Segundo Simmel, um dos grandes desafios dos habitantes das grandes cidades é demonstrar suas peculiaridades, sua personalidade, frente à indiferença e impessoalidade dos afazeres cotidianos. Isso se apresenta em fenômenos urbanos contemporâneos específicos, principalmente aqueles que com frequência são considerados “exóticos”, “bizarros” ou “sem sentido”, como, por exemplo, a pichação. No documentário “Pixo”, sobre a pichação em São Paulo, um dos pichadores suporta a tese de Simmel ao dizer que “a pichação é a arte que carrega toda a energia da metrópole: tem o egoísmo, a perversidade, o querer atingir o inatingível, ser o melhor”.
Ao observar e conversar com pichadores/grafiteiros de Santa Maria, cheguei à conclusão de que é possível pontuar, mesmo que genericamente, as motivações para a prática da pichação/graffiti em quatro tendências:
1 – Busca por adrenalina, os prazeres da transgressão;
2 – Busca por amizade, reconhecimento, status e marcação de território;
3 – Vontade de expressar-se e/ou protestar;
4 – Aspiração profissional e/ou fonte de renda.
Nas três primeiras, há um grande investimento de tempo e esforço físico, além dos riscos físicos (quando se trata de escaladas em grandes prédios) e possíveis problemas com a polícia. Além disso, como bem sabemos, grande parte da opinião pública abomina as pichações, e o poder público tende a lidar com a questão por meio da coerção policial. Em certos casos, como pude observar em Santa Maria, operações especiais anti-pichação (Operação Cidade Limpa, em 2012, e Operação Rabisco, em 2013) levadas a cabo pela polícia — com mandados de busca e apreensão na casa dos suspeitos — acabam tendo efeito reverso, fortalecendo ou instigando os grupos de pichadores. No período entre 2012 e 2015 a cidade de Santa Maria acompanhou o boom da pichação e passou a figurar entre as mais pichadas do país.
Já a quarta maior motivação dos pichadores/grafiteiros, aspiração profissional e/ou fonte de renda, mostra que há nichos de mercado em torno da prática. Abre-se, assim, espaço para outros olhares e maneiras de lidar com a questão. Foi seguindo uma lógica mais econômica que de coerção policial que, em meados de 2015, aconteceu a Operação Solvente e a Campanha Santa Maria do Bem, que implementaram a lei que aumentou o valor das multas aplicadas aos pichadores, de R$100 para em torno de R$3.000, podendo chegar a mais de R$5.000 em casos de reincidência. Ao mesmo tempo, as campanhas aumentaram o número de indivíduos e instituições dispostos a remunerar os pichadores/grafiteiros para fazerem pinturas e desenhos autorizados. Essas medidas resultaram, de fato, no enfraquecimento da prática ilegal. Soma-se a isso o fato de que os pichadores/grafiteiros mais consagrados, com o passar dos anos de prática, começaram a dar preferência às atividades remuneradas do que à transgressão.
São várias as possibilidades de lidar com a pichação/graffiti além da coerção estatal. Paris e Berlim são bons exemplos de cidades em que as cores e os riscos espalhados pelos muros flertam com o mercado, sendo ressignificados como street art e incorporados pelos moradores, conferindo identidade a certos bairros.
O L’Aerosol, na capital francesa, funciona como uma espécie de templo da cultura urbana. Local de exposições para profissionais e amadores, este espaço cultural abriga também um museu dedicado ao graffiti/pichação, promove oficinas de graffiti para um público de todas as idades e conta ainda com uma estrutura que inclui food trucks, mesas de jogos e pistas — tudo isso dentro da estética street art. Já no bairro de Belleville, também em Paris, os muros e fachadas estão liberados para receberem as cores e rabiscos, compondo o ambiente e agregando valor turístico e imobiliário à região. No bairro Kreuzberg, em Berlim, graffiti/pichação também é uma modalidade de turismo urbano, recebendo até cursos de fotografia especializados nas pichações/graffitis.
Possibilidades não faltam. Bares, pubs e cafés podem ter “paredes mutantes”, destinadas a serem riscadas pelos frequentadores. Modalidades de turismo urbano podem incluir as principais pichações/graffiti como atração em seus itinerários. Aplicativos de celular voltados para registro, compartilhamento de fotos e mapeamento de lugares pichados/grafitados; marcas de roupas e acessórios que se utilizem de imagens de pichações/graffiti consagradas da cidade como estampa.
No caso das cidades brasileiras em que o fenômeno da pichação é intenso (São Paulo, Campinas, Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba, Pelotas, Santa Maria), essas possibilidades heterodoxas de lidar com os rabiscos e cores seguem em aberto, ainda pouco exploradas, à espera da criatividade e da ousadia de empreendedores atentos às oportunidades sinalizadas por esse caos planejado das cidades. Empreendimento arriscado e controverso, certamente, mas afinal de contas por que não apostar naquilo que a vida urbana tem de mais ambivalente?
Rodrigo Nathan Romanus Dantas é mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e desenvolve pesquisas na área de Antropologia Urbana. Seu texto, reproduzido aqui, foi um dos vencedores do Concurso de Artigos do Caos Planejado.
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