Já pensou na possibilidade de não existirem mais pessoas em situação de rua? Os Estados Unidos pensaram e países como Canadá, Espanha, Portugal, França e Dinamarca seguiram a onda, incluindo a metodologia do Housing First em suas estratégias nacionais para resolver a situação.
A fórmula consiste em fornecer exatamente o que lhes falta: moradia e conexão. Os resultados são consistentes e, para completar, benéficos para os cofres públicos. No Brasil, o Projeto RUAS está testando o modelo e busca recursos para expandi-lo. A ideia da ONG é entender como ele se adapta à nossa realidade e, futuramente, sugeri-lo ao poder público.
Poder público e os métodos de intervenção tradicionais
Até os anos 1980, vistas como indigentes e culpadas pela própria condição, as pessoas em situação de rua não contavam com nenhuma lei que lhes garantisse ao menos alguns direitos. Tal cenário era global e a temática não fazia parte das pautas de políticas públicas nem mesmo nos países ditos desenvolvidos. Na década seguinte, enfim, nosso país começou a discuti-la e encaminhar mais recursos públicos para abrigos e casas de reabilitação.
Já nos anos 2000, o debate passou a ter maior presença na esfera pública, por meio da promoção de encontros nacionais e da ampliação de leis de proteção, com a inclusão do assunto nas discussões políticas de assistência social. Destaca-se a presença do tópico na Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e no artigo 23 da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS). Outro exemplo que vale ressaltar é a realização da primeira e única Pesquisa Nacional no Brasil em 2008, responsável por levantar dados demográficos e socioeconômicos.
Apesar da discussão ter ganhado força no final do século XX, muito pouco se falava em de fato acabar com a problemática, no Brasil e no mundo. A ideia de trazer iniciativas que não apenas amenizassem, mas sim solucionassem a situação surgiu com o psicólogo Sam Tsemberis da ONG norte-americana “Pathways to Housing”. Suas ideias culminaram na criação de um método que virou política pública, o “Housing First”, cuja tradução pode ser “habitação em primeiro lugar”.
Como o nome já diz, ele entende a moradia como a primeira etapa do processo de intervenção. Ou seja, inverte-se a ordem usual de assistência, priorizando, antes de tudo, alocar as pessoas em situação de rua em uma casa individualizada.
A ideia é gerar oportunidades de integração comunitária, além de melhorias na saúde física e mental através da estabilidade trazida pela moradia. Até então, a ida para casa era a última etapa de longos e ineficientes processos de tratamento, que não levavam em conta a autonomia do indivíduo e deixavam de romper barreiras simples e importantes para a entrada no mercado de trabalho.
Casas de reabilitação no Brasil, por exemplo, propõem-se a ajudar adictos em processos que duram, em sua maioria, apenas nove meses. Apesar de realizarem trabalhos exitosos em muitos casos, o serviço acaba e as pessoas costumam sair das casas sem destinos definidos. Continuam sem emprego, moradia fixa e suporte. Além disso, é claro, nem todos são capazes de se abster totalmente do uso de drogas em um primeiro momento.
Já os abrigos, ainda que pensemos naqueles cujas estruturas são adequadas e fornecem serviços de qualidade, são desenhados para receber diversas pessoas ao mesmo tempo. Neles, todos precisam cumprir regras rígidas que incluem mudanças de hábitos já enraizados. Na prática, é quase impossível pensar que uma pessoa que esteve há, digamos, 10 anos nas ruas, conseguirá se acostumar do dia para a noite a escovar os dentes quatro vezes ao dia ou arrumar suas camas todas as manhãs – pelo contrário, é preciso que entendam primeiramente a importância de cada conduta.
Para ilustrar com um caso concreto, uma pessoa atendida pelo Projeto RUAS, mesmo após se mudar para uma moradia adequada, seguiu fazendo suas necessidades fisiológicas dentro de uma garrafa pet. Ela não via a necessidade de se locomover já que “era mais fácil fazer sem levantar da cama”. Tal tipo de hábito não acaba de uma hora para a outra, muito menos através de regras rígidas. Contudo, em muitos casos, a pessoa seria obrigada a ir ao banheiro até “aprender” a usar o vaso sanitário.
Como o Housing First inovou na intervenção?
O Housing First, por sua vez, entende que é a própria pessoa quem deve decidir passar a usar o banheiro. Estimula-se perguntas como “por que você acha que a grande maioria das pessoas vai ao banheiro?”, “você acha que todos iriam caso não fosse preciso?”. No início, o participante respondia dizendo que era mais inteligente que todos e que para ele estava tudo bem.
Sem problemas! O certo e o errado são relativos. Cada pessoa sabe o que é melhor para si e o papel da equipe de suporte se limita a orientar e estimular reflexões. Algumas semanas depois, ele estava utilizando o banheiro porque sua namorada ficou incomodada com o mau cheiro e ele percebeu que seria melhor fazer diferente.
A pressa para mudar atitudes não tem valor algum de acordo com a metodologia. Pelo contrário, ela mais atrapalha do que ajuda. O ponto central é a mudança partir do participante. Sem dúvidas, os resultados são muito mais profundos e duradouros quando acontece dessa forma.
Anteriormente nesse texto, mencionamos a dificuldade de romper barreiras para entrar no mercado de trabalho. De cara, o método acaba com o péssimo ciclo “falta de emprego → falta de moradia”, que jamais havia sido direcionado por outras iniciativas. Se empregos formais exigem comprovantes de residência, como seria possível alguém ser contratado enquanto não vive em uma? Em paralelo, se não existe fonte de renda, obviamente não será possível ter acesso à moradia. Sem falar na dificuldade óbvia para cumprir rotinas de trabalho na ausência de lugar adequado para dormir, tomar banho, se alimentar e armazenar pertences.
A casa, além de direito humano básico, é um elemento estabilizador. Além de trazer segurança física e mental, ela facilita o acesso aos recursos básicos que todo ser humano precisa para sobreviver. Imagine quanto tempo uma pessoa sem moradia necessita para encontrar um lugar para tomar banho.
E para conseguir alimentos? Gasta-se muito tempo para, inclusive, encontrar um lugar para satisfazer suas necessidades sexuais de maneira segura. Não é à toa que diversos participantes do Housing First declaram que seus dias parecem ter dobrado ou triplicado de tamanho durante suas primeiras semanas no programa. Lógico! Passam a usufruir de facilidades muito distantes da realidade da rua.
Quando vivendo debaixo de um teto, preocupações de curtíssimo prazo dão lugar a planejamentos semanais e mensais, que, consequentemente, alimentam sonhos e geram um elemento primordial para qualquer ser humano: ter propósito de vida. Com o planejamento pessoal mudando de “o que vou fazer nas próximas horas para sobreviver” para “como posso continuar garantindo meu sustento por semanas ou meses”, é possível traçar planos para o futuro.
Em paralelo, uma série de serviços de apoio é oferecida, sempre focada na autonomia do indivíduo, em sua integração comunitária e saúde física e mental. São disponibilizadas consultas com psicólogos, aulas de alfabetização financeira, preparação para entrevistas, aulas de música, esportes, entre outras atividades que supram as necessidades particulares de cada um.
Novamente, ao falar em solucionar o problema, o método é capaz de atingir todos os variados perfis de pessoas em situação de rua. Dessa forma, busca atender pessoas com longas trajetórias na rua e que possuam deficiência física, problemas de saúde mental ou dependência química. Independentemente da gravidade de cada caso, a abordagem tem como objetivo garantir que o direito à moradia seja garantido.
Além de tudo, se provou mais barato para os cofres públicos nos países onde é aplicado. Governos compraram a ideia não “apenas” porque desejavam garantir direitos humanos, gerar mais empregos e movimentar a economia. Mas também porque pagar aluguéis e equipes de suporte saiu mais barato do que arcar com frequentes atendimentos em salas de emergência de hospitais, tratamentos de detox, abrigos, casas de acolhida e até mesmo cárcere. Veja aqui o exemplo do estado do Colorado (em inglês). Simples. Ficou bom para todo mundo!
Dessa forma, a metodologia foi alavancada quando alguns países desenvolveram estratégias nacionais para população de rua. Nos EUA, virou política pública em 2009 durante o governo Obama e viabilizou, desde então, a saída de mais de 80 mil pessoas das ruas do país. Canadá, França, Portugal, Espanha e países escandinavos são outros exemplos onde governos abraçaram a causa e os resultados foram significativos, principalmente em termos de redução de gastos públicos, estabilidade na moradia, segurança, saúde e empregabilidade.
E como tudo isso se encaixa no Brasil?
No Brasil, o Projeto RUAS é pioneiro na aplicação do método, por meio de recursos privados, dentro do programa Habitação Primeiro no Rio de Janeiro. O primeiro contato com a metodologia se deu nos EUA, em 2016. Foram convidados a participar do programa YLAI, também implementado por Obama e voltado para capacitação e integração de jovens líderes da América do Sul (todos provenientes de iniciativas sociais).
Já em 2017, um representante do Projeto RUAS viajou para Madrid para buscar boas práticas em um curso completo da metodologia oferecido pela RAIS Fundación, organização espanhola responsável por sua aplicação na Espanha desde 2014. Tudo isso em paralelo com projetos pilotos e muitos aprendizados no Rio de Janeiro.
Hoje, o Habitação Primeiro segue em fase de testes e há uma pessoa que esteve em situação de rua participando. Os resultados até aqui são extremamente satisfatórios, principalmente em questões relacionadas ao aumento da geração de renda, educação, segurança e saúde. Em poucos meses, essa pessoa conseguiu uma vaga para voltar a estudar no Ensino Fundamental, deixou de ter dores crônicas, encontrou um emprego formal de dois dias na semana e melhorou significativamente seus problemas de pele. Sem contar que parece outra pessoa em termos de autoestima.
A ideia do RUAS é mobilizar e treinar comunidades auto-organizáveis para aplicarem a metodologia em suas regiões. Captações de recursos são pensadas de acordo com a mesma lógica: cada grupo de pessoas se junta para captar e suportar determinado participante. Todos são capacitados para atuarem de acordo com a filosofia do modelo, dados são coletados e o acompanhamento dos resultados é feito regularmente.
Dessa maneira será possível trazer escalabilidade ao modelo e, na posse de dados e métricas consistentes, imagina-se ser possível dialogar com o poder público. É preciso que a sociedade civil se mobilize em rede para garantirmos o mínimo de dignidade para esse grupo de pessoas que segue (sobre)vivendo à margem.
Se você está interessado em contribuir, o RUAS busca pessoas e empresas que desejam investir ou mobilizar suas redes para captar recursos e expandir o Habitação Primeiro. Com mais participantes, a ONG poderá medir resultados, encontrar a fórmula perfeita para a realidade brasileira e, finalmente, sugerir a aplicação da metodologia para o governo. Sabemos que para impactar o país como um todo, não tem jeito, só virando política pública.
Publicado originalmente em Politize em março de 2018.
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