Como zoneamento e conjuntos habitacionais favoreceram o Estado Islâmico
Imagem: Maasone/Flickr.

Como zoneamento e conjuntos habitacionais favoreceram o Estado Islâmico

O zonemaneto de Paris cria comunidades fragilizadas e um terreno fértil para o recrutamento do Estado Islâmico.

20 de abril de 2016

Em 2015, ataques terroristas em Paris chocaram o mundo. Uma cidade reconhecida por sua qualidade de vida e destino de milhões de turistas todos os anos, que caem de encantos pelas largas avenidas e edifícios preservados do século XIX. Os ataques miraram uma revista provocativa, cujas charges incluíam Maomé em situações controversas, e uma boate popular. Em 2016, a cidade de Bruxelas foi cenário de dois ataques simultâneos. Ambos os casos têm em comum os organizadores, já que os atos foram reivindicados como de autoria do temido Estado Islâmico – rede islâmica que usa de meios violentos para impor ao mundo sua versão do livro sagrado Corão.

Periferias

Anos antes, no entanto, outro tipo de ação colocava a capital francesa em noticiários de todo o mundo – em 2005, eclodiram violentas revoltas nas periferias da cidade, reconhecidas por seus altos níveis de pobreza e grande diversidade étnica, sendo principal destino dos milhares de imigrantes que chegaram a cidade de diferentes partes do mundo, em especial nações da África e do Oriente Médio. Os protestos exigiam melhores condições de vida, em locais assolados por falta de serviços públicos, altas taxas de desemprego e criminalidade, verdadeiros enclaves de pobreza frente à opulência e à exuberância dos boulevards parisienses. Em algumas localidades, como La Chêne Pointu, o percentual de moradores pobres supera 70%.

Outro ponto em comum une os eventos na Bélgica e na França – os terroristas identificados, recrutados do Estado Islâmico, eram oriundos destas periferias de Paris e cidades belgas, tendo, em grande parte, ali crescido.

Intervenção do Estado

Estas localidades são comumente referidas pela mídia e por moradores como guetos, alvos de uma série de intervenções do Estado ao longo das últimas décadas. A maior parte foram investimentos em habitação social, na forma de altos prédios residenciais de conceito modernista. Em Paris, a ideia era desmantelar as favelas que cresciam exponencialmente ao redor da cidade, chamadas de bidonvilles. De acordo com levantamento do Ministério do Interior francês, em 1966 já existiam 119 bairros deste tipo na região metropolitana de Paris, em sua grande maioria habitada por imigrantes do Norte da África. A formação destas enclaves se acelerava frente aos altíssimos preços de imóveis disponíveis na cidade, em grande parte resultado das estritas regras de construção que limitam a oferta de moradia e da complexa burocracia francesa para contratos [1].

O governo então iniciou a construção de condomínios habitacionais em massa, substituindo as residências precárias e abrindo caminho para a concentração dessa população, com objetivo de combater autoconstruções irregulares que pipocavam pelas periferias de Paris. Boa parte dos esforços se deu na construção das Villes nouvelles, que visavam edificar novas comunidades em regiões nas extremidades de cidades com crescentes níveis de déficit habitacional, como Paris, Lyon e Lille. Nestas se edificariam gigantescos “HLMs”, sigla para habitação social para baixa-renda.

Localização dos protestos de 2005 e mapa de renda salarial média por bairro da grande Paris. (Licensa CC BY-SA 3.0 e GFDL)

Estas “soluções” foram em consonância com a tendência da época: cidades como Nova York, Chicago, Berlim (ocidental e oriental) e outras grandes cidades europeias e norte-americanas trilhariam o caminho dos high-rises para habitação social, de forma a combater as versões locais de favelas na falha tentativa de prover um ambiente que julgavam em condições para atender a população mais pobre. Embora mais tarde, Bruxelas também aderiria a novas aglomerações como solução: bairros como Molenbeek (antes uma pujante área industrial, então em boa parte desocupada) receberiam incentivos na forma de edifícios para os menos avantajados.

Fracasso dos conjuntos habitacionais

Em cidades como Berlim e Nova York, os modelos seriam posteriormente abolidos ou adaptados. As ações de concentração populacional levariam a formação de núcleos socialmente frágeis, sem espírito de comunidade e isolados das oportunidades de cidades adjacentes, bem como distantes dos polos de emprego e comércio dos respectivos locais.

A falha destas ações governamentais – amplamente abraçadas em meados dos anos 50 e 60 como a vitória de um planejamento urbano ordenado – ficou aparente com os níveis alarmantes de criminalidade, uso de drogas e fatores de ruptura social que estes atingiriam ao longo da década de 70, bem como a resistente pobreza e subemprego das populações. Isto refletia o isolamento, que segmentaria a pobreza de forma institucional e amparada em abundantes subsídios estatais, na forma de bairros para determinada camada social. Casos mais extremos como o projeto habitacional Pruitt-Igoe, em St. Louis – cujas 33 torres seriam inteiramente demolidas após 20 anos de sua construção – simbolizaria a falha do modelo em prover condições adequadas de moradia e qualidade de vida para aqueles impactados.


Diversos estudiosos há décadas apontam para a percepção destas como armadilhas de pobreza, longe das oportunidades de ascensão social presentes nas respectivas sociedades.


Em Paris, no entanto, a resistência seria maior com relação ao desmonte dos “projetos” e das Villes nouvelles – ecoando uma cidade congelada no tempo, com restrito zoneamento e limitações na capacidade construtiva que, enquanto visa manter o estilo arquitetônico e a paisagem parisienses intactos, também joga aos céus os preços no complexo mercado imobiliário da cidade. Ainda assim, diversos estudiosos há décadas apontam para a percepção destas como armadilhas de pobreza, longe das oportunidades de ascensão social presentes nas respectivas sociedades. Além disso, a segregação urbana parece ter efeitos ainda mais nefastos em grupos de imigrantes, dado a necessidade de integração.

Conforme Jane Jacobs escreveu em seu clássico Morte e Vida de Grandes Cidades, cidades têm a capacidade de fornecer algo para todos, porque – e somente se – forem construídas por e para todos. Casos como o de Paris e Bruxelas refletem urbanidades que progressivamente se constituíram mais exclusivistas e menos acessíveis – trazendo como resultado o exato oposto do que pretendiam, como os atos extremistas expõem de forma trágica.

Mercado

Mesmo limites de preços de aluguéis ou percentuais obrigatórios de construção para conjuntos sociais (housing caps), anunciados em meados da década passada fizeram pouco para alterar a realidade geral de Paris: a cidade permanece cara e inacessível, com as medidas limitando oferta e empurrando as moradias sociais para os extremos da capital, invertendo as intenções anunciadas. Regiões como o 19th arrondissement, nos extremos dos limites da cidade, com níveis de habitação social em quase 40%, não conseguem responder adequadamente as pressões por moradia, na falta de um mecanismo dinâmico que permita ao mercado responder as estas, que são crescentes, bem como a captura da legislação urbanística por determinados grupos de interesse.

A alternativa não chega a ser uma opção; os desprovidos de condições de pagar 1080 euros (média de aluguel, 1 quarto no centro da cidade) mensais tem que buscar moradias onde há oferta a preços acessíveis – essencialmente, recorrem aos guetos periféricos, cuja concentração é reforçada por laços de comunidades de imigrantes já instaladas. A formação da comunidade, apesar de prover o claro benefício de estabelecer uma rede de ajuda e solidariedade entre indivíduos que se identificam, no médio e longo prazo dificultam a integração destes moradores ao país em que se estabelecem. Tal segregação dificulta a adaptação à cultura, estilo de vida e costumes locais, bem como reduz as chances de empregabilidade e o conhecimento de programas e serviços públicos disponíveis, por vezes insulando estas comunidades da vida no país que agora habitam. Isto repercute em todas as suas famílias, em ciclos viciosos que promovem frustração entre jovens e adultos.


Tal segregação dificulta a adaptação à cultura, estilo de vida e costumes locais, bem como reduz as chances de empregabilidade e o conhecimento de programas e serviços públicos disponíveis.


Novamente citando Jacobs, “Tudo [em conjuntos habitacionais] tende a se degenerar em grupos ilegítimos, como seu curso natural. Não há vida pública normal. Apenas os mecanismos dos indivíduos de compreender o que os circunda é muito dificultado – fazendo do mais simples ganho social algo extremamente difícil para estas pessoas”, ilustrando as dificuldades de integração dos moradores dos projetos estadunidenses.

Preço de imóveis médio por m² na região da Île-de-France. (Fonte: MeilleursAgents)

A realidade de Paris criou o pior dos dois mundos nas periferias do país: resquícios de uma política habitacional equivocada – e que não foi revista em face de resistência ideológica misturada a crescente demanda por habitação popular num país que estagnou economicamente, enquanto se viu destino preferencial de uma miscelânea de grupos de imigrantes nas últimas décadas – e formou um ambiente propício para revoltas e indignações, dado os aglomerados se organizam (e se sentem) segregados do resto da população original, por mais diversa que esta já seja. Em Bruxelas, ainda que as condições sejam aparentemente melhores que em Paris – onde a construção das novas aglomerações foi muito mais agressiva e distante das regiões centrais – os preços são igualmente excludentes e a oferta extremamente limitada, propiciando a formação de enclaves segregados.

Estado Islâmico

Não é à toa que estas comunidades sejam terrenos férteis para recrutamento pelas células do Estado Islâmico, cujo principal trabalho de prospecção de “voluntários” reside em operações dentro destas regiões. Bairros como Molenbeek, na Bélgica, e Cergy-Pontoise, Évry e Marne-la-Vallée, constituídos como ville nouvelles em Paris, deram origem aos perpetradores dos ataques em seus respectivos países. A situação de segregação social, distância das oportunidades e mecanismos dinâmicos das belas e ricas cidades que os circundavam, e absoluta falta de integração cultural que resultou nas distâncias provavelmente pouco contribuiu para afastá-los das ofertas de pertencimento e justiça que o Estado Islâmico os prometeu – investigar as raízes do que propele estes jovens a aderirem ao terrorismo e pensar mais nas cidades como cidades propriamente ditas do que como museus é essencial para maior paz na região.

[1] Paul White, “Immigrants, immigrant areas, and immigrant communities in postwar Paris,” em Migrants in Modern France: Population Mobility in the Later Nineteenth and Twentieth Centuries

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  • Excelente artigo. Aqui em Fpolis, anos atrás, um conhecido empresário do norte da ilha propôs ao ex-prefeito da cidade, hoje senador que se misturasse a população de uma favela a ser deslocada para o interior da cidade e não, como se previa e desejava os grupos de residentes oficiais em audiências públicas, em guetos isolados. Ele já via como, pela sua própria experiência no ramo turístico, se integrava a comunidade em parcerias com empreendedores, o que não era o caso de quem se mantinha isolado e sem perspectivas em sua ‘comunidade’.