Como Copenhagen se tornou a joia do urbanismo mundial | Parte 1
Foto: Anthony Ling

Como Copenhagen se tornou a joia do urbanismo mundial | Parte 1

Conhecida como “a cidade mais feliz do mundo”, a capital da Dinamarca é uma referência em qualidade de vida urbana. Mas nem sempre foi assim.

24 de julho de 2025

São 19h no novo distrito de Nordhavn, mas no verão dinamarquês ainda está ensolarado. Dezenas de banhistas aproveitam as águas de menos de 20°C do Øresund, o estreito marítimo que banha a cidade ao leste. O cenário, de uma arquitetura contemporânea dinamarquesa meticulosamente desenhada, parece ter saído de uma ferramenta de IA. Calçadas perfeitas com piso tátil, canteiros arborizados, ciclovias largas, ruas pedestrianizadas e muitas, muitas bicicletas.

Banhistas em Nordhavn. Foto: Anthony Ling

Uma arquitetura futurista, com torres de cimento retrofitadas para abrigar escritórios, um edifício garagem cuja cobertura abriga uma pracinha e uma academia a céu aberto e, no horizonte, a vista para Copenhill, uma usina que transforma lixo em energia elétrica para mais de 60 mil domicílios e gera aquecimento para cerca de 160 mil domicílios. Em plena expansão, Nordhavn tem cerca de 6 mil habitantes, com a expectativa de abrigar 40 mil até 2050.

Praça no topo de um edifício em Nordhavn. Foto: Anthony Ling

A unidade de inteligência da revista The Economist recentemente classificou Copenhagen como a melhor cidade do mundo para se viver. Apesar dos indicadores terem um alto grau de subjetividade, como “estabilidade” e “cultura e ambiente”, a notícia tomou os holofotes da imprensa global. Sem entrar em detalhes do ranking, é preciso reforçar que, nas últimas décadas, Copenhagen vem se destacando como uma joia do urbanismo global, sendo uma referência de planejamento urbano no mundo inteiro.

Para quem vê Copenhagen hoje – com sua cultura de bicicletas, ruas cheias de pedestres, espaços públicos impecáveis e uma mistura invejável de arquitetura contemporânea e preservação de edifícios históricos – é difícil imaginar que, algumas décadas atrás, a cidade passava por um cenário bem diferente.

Leia mais: A vitalidade urbana começa colocando as pessoas em 1º lugar

O nascimento e a derrocada do bom urbanismo

Começando pela mobilidade, é preciso ressaltar que a cultura da bicicleta em Copenhagen é histórica. A primeira ciclovia foi construída em 1892, e em 1912 a cidade já tinha 50 km de ciclovias. São Paulo, por exemplo, só foi atingir 50 km de ciclovias em 2010, com o agravante de que já tinha 11 milhões de habitantes, enquanto Copenhagen tinha apenas 500 mil em 1912.

Essa cultura começou a ser revertida no pós-guerra, quando o urbanismo modernista e voltado para o automóvel conquistou a Europa. Na mesma época, houve o desenvolvimento de novos subúrbios acessíveis por ferrovias através do famoso “Plano dos Dedos” de Copenhagen.

Elaborado em um período de euforia por um grupo independente de urbanistas, o “Plano dos Dedos” foi o maior marco do urbanismo dinamarquês e perdura até hoje. O Plano delineava cinco frentes de expansão urbana para o noroeste através das redes ferroviárias metropolitanas, deixando áreas verdes – como áreas rurais e de preservação ambiental – entre os “dedos”. Ele também adiantava conceitos contemporâneos de urbanismo, associando desenvolvimento urbano com a expansão da infraestrutura de transporte, e bebia do urbanismo “tradicional” com a filosofia de que a atividade primordial do planejamento seria identificar as áreas que não devem ser urbanizadas.

Ilustração do “Plano de Dedos” de 1947. Imagem: Eva Sørensen e Jacob Torfing, no artigo “The Copenhagen Metropolitan ‘Finger Plan’: A Robust Urban Planning Success Based on Collaborative Governance”

Ao mesmo tempo, o pós-guerra também foi o período em que se deu início ao que o urbanista Tom Nielsen descreve como a construção da “cidade de bem-estar” dinamarquesa, se referindo à arquitetura construída durante a formação do Estado de bem-estar social, característico dos países escandinavos. Os conjuntos habitacionais e os edifícios para equipamentos – como escolas, hospitais, creches, abrigos para idosos e edifícios da administração pública – normalmente eram definidos pelo modernismo funcionalista, ou seja: blocos repetitivos, funcionais e homogêneos, seguindo rígidos zoneamentos de atividades.

Nos espaços públicos, as bicicletas eram vistas como algo do passado, e muitas ciclovias foram eliminadas para dar mais espaço para fluxo de automóveis. O urbanista Mikael Colville-Andersen, em um artigo crítico à urbanização de Copenhagen, cita uma série de projetos dos anos 1960 e 1970 de túneis e rodovias que teriam destruído a Copenhagen que conhecemos hoje, caso tivessem sido construídos.

Projeto rodoviarista de 1958 no coração da cidade. Nunca chegou a ser construído. Imagem: Mikael Colville-Andersen

Com uma mudança na configuração viária e a expansão de subúrbios acessíveis por ferrovias, o percentual de viagens realizadas por bicicleta caiu para um mínimo histórico de 10% em 1972. (Também para efeito comparativo, cidades como Paris, que hoje fazem uma “revolução” de bicicletas, recentemente atingiram o nível de 10% das viagens por bicicletas, enquanto capitais brasileiras têm em torno de 3%).

Bastaram 20 anos para Copenhagen começar a perceber que aquele modelo estava fadado ao fracasso. Nos anos 1970, o ideal modernista e rodoviarista entra em crise e começa a ser criticado pelas comunidades e reavaliado pelos seus urbanistas. As áreas planejadas da “cidade de bem-estar”, com seus grandes empreendimentos habitacionais e superfícies de asfalto, eram vistas como ambientes homogêneos, repetitivos e que alienavam as pessoas. Além disso, veio a crise do petróleo, aumentando os custos de andar de carro e a percepção crítica da população em relação à dependência desse meio de transporte. Nessa época, grandes demonstrações começam a ser organizadas por ciclistas, muitos ligados à Federação Dinamarquesa de Ciclistas, que já havia sido criada em 1905.

Em 1971, é publicado o livro “Life Between Buildings” (ou “A vida entre edifícios”), do urbanista dinamarques Jan Gehl, com uma análise profunda do que promove a qualidade da vida nos espaços públicos, assim como uma crítica à arquitetura e ao urbanismo funcionalistas que vinham sendo praticados. Assim, o trabalho de Gehl já começava a influenciar o pensamento urbanístico de Copenhagen, junto com uma filosofia que não mais descartava a cidade antiga – com maior densidade, usos diversos, calçadas e fachadas ativas –, mas valorizava as suas virtudes.

Leia mais: Jan Gehl: quem é o homem por trás das “Cidades para pessoas”?

Nos anos 1980, a cidade tinha um número crescente de automóveis nas ruas, uma taxa de desemprego de 17,5% e um enorme déficit orçamentário, que impedia investimentos em infraestrutura. Embora a região metropolitana tenha vivenciado um crescimento populacional estável ao longo dos anos, o município de Copenhagen atingiu, em 1990, o patamar de 467 mil habitantes, apenas 60% da população de 1940-50. Com a fuga populacional e de capital, áreas industriais e portuárias da cidade ficaram subutilizadas. A capital dinamarquesa estava em crise.

Um prefeito entra para a história

Entra em cena Jens Kramer Mikkelsen, eleito prefeito de Copenhagen em 1989 e que serviu até 2004, o mandato mais longevo da história da cidade. Depois, ele liderou a principal companhia de desenvolvimento da cidade até 2018, com uma história de quase três décadas que mudou completamente o rumo do desenvolvimento urbano da capital dinamarquesa. O artigo “The Copenhagen City and Port Development Corporation: A Model for Regenerating Cities” conta essa história e reforça quais foram as medidas mais importantes para a revitalização. 

Segundo Mikkelsen, “a virada de chave veio no início dos anos 1990, quando um novo e enorme edifício comercial na região portuária permaneceu vazio por vários anos e todo mundo reconheceu que algo precisava ser feito”. A administração da cidade sabia que a situação era crítica, mas seria um desafio financiar qualquer projeto de revitalização e investimento em infraestrutura em larga escala. No cenário já desfavorável, não era viável aumentar impostos.

Assim, os governos local e nacional uniram forças para pensar em uma estratégia para transformar Copenhagen. O objetivo era criar corporações públicas para “regenerar grandes distritos na região central da cidade, maximizando o valor da terra pública, e usar as receitas geradas por um zoneamento inteligente e boa alocação de recursos para financiar infraestruturas de transporte de massa, entre outras.”

É preciso lembrar também que, até 2002, Copenhagen não tinha uma rede de metrô (apenas seu trem metropolitano). Ela foi a última capital da Europa Ocidental a implantar um sistema de metrô – tudo isso durante um dos maiores períodos de crise financeira da sua história.

Hoje, fica claro que a capital dinamarquesa conseguiu se reerguer, e Jens Kramer Mikkelsen representou o pontapé inicial dessa complexa transformação. As estratégias e artifícios utilizados para isso podem inspirar soluções para diversas cidades brasileiras, e serão explicados em maior profundidade no próximo artigo desta série.

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