Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
As reuniões populares cumprem uma função essencial no desenvolvimento da vida em comunidade e na formação das cidades.
22 de novembro de 2017Fatores importantes para a construção da inteligência e sensibilidade coletivas, as reuniões populares cumpriram uma função essencial no desenvolvimento da vida em comunidade e no microplanejamento das cidades. Em um país como o Brasil que, além de apresentar clima favorável para realização de atividades ao ar livre, é reconhecido por sua receptividade para festas e eventos de rua como o Carnaval e o São João, não é de se espantar que iniciativas de cunho coletivo funcionem muito bem de forma natural.
Não faltam exemplos: iniciativas como a ocupação pela população do Elevado Costa e Silva, o “Minhocão”, há mais de 25 anos em São Paulo, têm sido surpreendentes mesmo que não possuam estrutura de apoio — como banheiros, alimentação e comércio — nem planejamento para que aconteçam.
Outro exemplo próximo é o do fechamento da Av. Beira Rio em Porto Alegre aos fins de semana, desde o início dos anos 90, com ocupação massiva de pessoas não só da própria cidade, como também de toda a região metropolitana, muitas vezes simplesmente para apreciar o pôr do sol da orla do Rio Guaíba. Se esse tipo de apropriação acontece de forma tão efetiva, apenas com o fechamento da rua para os carros, pode-se imaginar o que aconteceria se houvesse algum microplanejamento nessas áreas.
Essas formas de ocupação acontecem devido à necessidade de atualização das cidades com relação às suas grandes estruturas defasadas, como enormes pavilhões fabris em regiões centrais e avenidas superdimensionadas para os carros — estruturas impróprias para as diversas novas demandas da população. As ocupações acontecem como forma resiliente e criativa dos atores de lidarem com esses problemas estruturais. Esses espaços desafiam as lógicas convencionais da cidade, criando relações sociais, espaciais e econômicas alternativas e autogeridas.
Tais apropriações acontecem de forma natural ou acionadas por alguma iniciativa de empreendedorismo cultural, como o recente sucesso das iniciativas culturais ao ar livre e food parks. Não seria exagero dizer que a construção coletiva da cidade poderia ser a chave para a solução de diversos problemas estruturais de masterplan já consolidados.
Isso pode ser feito através de técnicas e estratégias coletivas de microplanejamento como, por exemplo, o placemaking, processo de desenho colaborativo de espaços públicos que levam em conta os desejos, interesses e necessidades das comunidades locais. Essas formas de apropriação são muito ricas pois, além de darem voz a todas as camadas da sociedade interessadas naquele espaço, incentivam o sentimento de pertencimento, de cuidado e até mesmo de autossuficiência da comunidade, garantindo a preservação com o passar do tempo.
Além dos benefícios já mencionados para os usuários, essas micro intervenções coletivas poderiam promover a ressignificação de espaços que já não são ocupadas para seu uso original: reativação de territórios degradados, incentivo à cultura popular, versatilidade de usos nos diferentes horários do dia e da semana, e criatividade para propor alternativas às grandes e onerosas obras públicas, afetando até mesmo parte dos problemas de segurança.
As microintervenções teriam o poder de transformar uma avenida de trânsito congestionado durante horários de pico em feiras ecológicas à noite ou fins de semana, por exemplo. É a máxima do conceito de diversidade de usos, de Jane Jacobs, escritora que influenciou profundamente o pensamento urbano a partir dos anos 60.
A esse caráter adaptativo do microplanejamento podemos somar o crescente aumento da utilização de arquitetura efêmera em eventos e em espaços públicos. O resultado será a chave da adaptabilidade da cidade numa escala de paisagem, que aqui podemos chamar de microurbanismo efêmero.
Táticas nessa escala podem ser interessantes para os empreendedores, uma vez que promovem uma real aproximação ao público alvo. Do ponto de vista social, elas estimulam demandas em potencial e táticas adaptativas, e são utilizadas como forma de testar intervenções antes de efetivá-las, a exemplo das mudanças na Times Square, realizadas por Janette Sadik-Khan.
Frente a essa participação popular tão forte, onde ficaria o papel do arquiteto e urbanista no planejamento da cidade? A eles cabe aquilo que, sem dúvida, é sua atividade fundamental: ouvir as partes interessadas, analisar entorno e condicionantes, formular uma estratégia, passar para o papel e tratar de materializá-la.
Porém, nesse caso, o papel do arquiteto passa a ser menos o projeto da parte edificável ou materializável, mas sim o planejar do não edificável, do espaço “entre”, das bases para que algo possa ocorrer ou o que podemos chamar de design de eventos.
Por espaço “entre” consideramos, aqui, toda apropriação espontânea temporal que possa ocorrer. E isso pode, muitas vezes, transcender o planejamento do arquiteto — e que bom que isso ocorra pois, afinal, seria impossível que o arquiteto pudesse prever e limitar toda intervenção de um espaço que nem mesmo existe de forma definitiva. O objetivo do projeto, nesse sentido, seria a apropriação livre, a criação, as experimentações — ou seja, um projeto aberto a uma infinidade de utilizações.
O próprio uso do espaço criaria significado para ele, dependendo da ótica de quem o utiliza. Quanto ao projeto de microlpanejamento, convém que tenha o traço demarcador, seja de hierarquia, de suporte ou de guia para as atividades que vão ser desenvolvidas e definidas posteriormente pelos usuários-interventores.
Mais do que isso, convém que se projete esperando o máximo de interações entre o que está definido e o que não está definido, podendo-se utilizar táticas como arquitetura efêmera, mobiliários interativos e itinerantes.
O desafio do arquiteto é projetar para que espaços espontâneos e ativos possam ser criados constantemente, considerando sua temporalidade e impermanência. É preciso abrir espaço para as imprevisibilidades, disponibilizando lugares utilitários para as comunidades preencherem da forma que lhe faz mais sentido — afinal, a própria população é o verdadeiro agente das mudanças de uma cidade.
Estefânia Weber é Arquiteta e Urbanista pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e membro da Mobicidade – Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta em Porto Alegre. Seu artigo, representado nesta página, ficou em 2º lugar no 1º Concurso de Artigos do Caos Planejado. Você pode conferir os outros artigos vencedores aqui.
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