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“Kowloon foi, possivelmente, a coisa mais próxima a uma cidade moderna verdadeiramente auto-regulada, auto-suficiente e auto-determinada já construída na história…era onde eles [imigrantes ilegais], recuperavam seu fôlego: onde eles podiam viver como chineses entre chineses, sem pagar impostos, participar de censos ou serem atormentados por governos de qualquer natureza. Aqui os aluguéis eram piedosamente baixos e nenhum xereta colonial bisbilhotava perguntando sobre vistos, licenças, condições de trabalho, salários ou qualquer outra coisa.”
“O que fascina sobre a Cidade Murada é que, apesar de todos seus problemas, seus construtores e residentes tiveram sucesso ao criar o que arquitetos modernos, com todos os seus recursos em dinheiro e expertise, falharam: uma cidade como ‘megaestrutura orgânica’, não determinada rigidamente para a vida toda mas continuamente respondendo às constantes mudanças de demandas dos seus usuários, atendendo todas as necessidades desde abastecimento de água a religião, provendo ainda o aconchego e a intimidade de uma única enorme residência.”
Peter Popham, trecho de artigo publicado pela primeira vez na The Independent Magazine, maio de 1990.
Há tempo tenho vontade de escrever sobre a Cidade Murada de Kowloon, uma favela totalmente atípica em um dos distritos de Hong Kong. Ela tinha prédios de até 14 andares em um ambiente extremamente compacto com mais de 33.000 habitantes, que chegaria a uma densidade aproximada de 1.255.000 hab/km², que significa mais de 40 vezes a densidade de Manhattan e 180 vezes a densidade de Hong Kong e São Paulo.
Seguindo o caráter das comunidades informais, ela se desenvolveu ao longo de décadas em terra pública, no caso, um forte abandonado que estava em conflito entre a China e a Inglaterra, então colonizadora de Hong Kong.
Com o tempo ela organizou sua própria associação de moradores e suas atividades econômicas, mesmo após sucessivas tentativas de remoção, tanto por parte do governo chinês como de Hong Kong.
Ela parou de crescer quando chegou no seu limite natural: a altura dos prédios ficou restrita dado ao receio dos construtores de entrar em conflito com a rota dos aviões do aeroporto, não muito distante dali. Em 1987, sem negociar com a comunidade, o governo desapropriou a terra com compensação aos moradores.
A medida teve aprovação de alguns, mas reprovação da maioria: pessoas que viveram todas suas vidas ou tinham seus negócios ali não queriam sair à força, com compensações financeiras muito menores do que mereciam.
O livro “City of Darkness: Life in Kowloon City” do fotógrafo Greg Girard com ajuda de Ian Lambot, é o trabalho mais incrível sobre a cidade, e desmistifica várias ideias negativas que temos sobre as favelas e o mundo informal.
Apesar de abrigar operações ilícitas como tráfico de drogas, a grande massa de moradores de favela são trabalhadores esforçados em busca de oportunidades na cidade. Ele mostra claramente as vantagens empreendedoras geradas em um ambiente desregulado e, sobretudo, como estes ambientes ajudam a camada social mais baixa de uma cidade.
Edward Glaeser comenta na sua recente obra “The Triumph of the City” como a presença de favelas em uma cidade, ao contrário do que se acredita normalmente, é um sinal de vitalidade urbana e não de decadência. O argumento pode ser controverso, mas é lógico e simples:
“Cidades não estão cheias de pessoas pobres porque as tornam mais pobres, mas porque as cidades (atraem) pessoas pobres com a promessa de melhorar suas vidas… [O grande problema com as favelas] é que os residentes são desconectados demais do coração econômico da metrópole…
As favelas do Rio são densamente aglomeradas porque a vida na favela é melhor do que a miserável pobreza da zona rural. O Rio há tempos oferece mais oportunidades econômicas, serviços públicos e diversão que as áreas desoladas da interior.”
Ao ler a obra de Girard se percebe que a teoria de Glaeser realmente reflete a realidade. Residentes como Yim Kwok Yuen, um antigo morador de Kowloon que mantinha uma pequena fábrica de carnes cozidas, fala por si próprio:
“Eu vim de uma cidade pobre onde as condições de higiene eram muito piores. Vindo de um lugar tão pobre achei que Hong Kong fosse o paraíso.”
O que também impressiona é que, diferente da burocracia e corrupção encontrada no Brasil, Hong Kong é a cidade-estado mais economicamente livre do mundo e mesmo assim tem esta atração ao mercado informal. Isso claramente mostra que até as menores barreiras artificiais de entrada no mercado excluirão os mais pobres e menos qualificados que não têm condições de vencê-las.
Ao ler todos os depoimentos dos moradores também se entende que comunidade não era totalmente autônoma, se beneficiando de alguma forma de gatos de energia e água. Porém, em contrapartida, eram prejudicados pelo fato de que nenhuma empresa do mundo formal era autorizada a investir lá dentro, já que Kowloon não era reconhecida pelas autoridades locais.
O livro de Girard e Lambot nos fornece entrevistas incríveis com os moradores, que mostram claramente que o mundo informal permite a sobrevivência urbana destas pessoas mais pobres excluídas pelos excessos de regulação: moradias mais simples, serviços dentários e médicos, fornecedores alimentícios e restaurantes e pequenas manufaturas e construtoras que seriam proibidas de operar segundo a legislação de Hong Kong.
É um ambiente onde todos podem prosperar e enriquecer neste ambiente até que consigam, enfim, enfrentar a burocracia do mundo formal. Isso é o que Hui Kwong, secretário de finanças da associação comunitária local Kai Fong descreve:
“A cidade criou alguma riqueza e um bom número de capitalistas. Tivemos pouca, se é que alguma sequer, restrição para negócios aqui — nenhuma licença ou taxa de registro era necessária, nenhuma regra ou regulação, nenhum imposto, e eletricidade e água eram baratos. Era conveniente para nós, das classes mais pobres.”
Como praticamente toda favela no mundo tem sua própria associação para se auto-organizar, de baixo para cima, a Kai Fong exercia vários serviços comunitários e agia voluntariamente através de participação e troca. Hui Kwong continua:
“A Associação Kai Fong foi formada para defender a comunidade do governo de Hong Kong. Foi na primeira vez que eles tentaram derrubar a Cidade Murada. Foi uma questão de vida ou morte para nós — onde teríamos ido se a cidade tivesse sido demolida?
[…] Uma vez que a Associação estava em pé e funcionando, ela começou a cuidar dos problemas sanitários e sociais na Cidade Murada. Ela também começou a aprovar contratos de propriedade colocando o selo da Associação em contratos de venda. […] Isso foi feito para que os compradores não fossem enganados.”
Chan Pui Yin, proprietário de uma loja e residente de Kowloon por mais de 40 anos, também comenta a importância que a Kai Fong teve para os residentes da cidade, mas também descreve a ordem emergente e aparente falta de necessidade de um planejamento de cima para baixo. Estes três trechos que selecionei da sua entrevista ilustram bem esta ideia:
“Não existiam assaltos — apesar de criminosos usarem a Cidade Murada para se esconderem, todos se conheciam então ninguém nunca tentava machucar os locais. […] Era um pouco como a vida nos vilarejos da China antigamente — um harmonioso estado de anarquia.”
“Aqui você pode fazer seu negócio sem uma licença e não precisa registrar suas contas. Você não precisa avisar as autoridades se você contrata um funcionário. É muito conveniente e custa muito menos.”
“Kai Fong se estabeleceu com um papel de testemunha e árbitro de disputas como forma de angariar fundos. Entretanto, disputas envolvendo contratos de propriedade são poucas e raras.”
O livro demonstra que as igrejas também exerciam um papel importante no cotidiano da Cidade Murada. Gerg Girard comenta que “apesar de várias ofertas lucrativas, o Reverendo Liu [da CNEC Living World Church] acreditava que pelo menos uma parte da cidade deveria receber luz natural e ar fresco.”
O pátio da CNEC era uma das únicas praças de Kowloon, dando luz natural para todos os prédios ao seu redor. O Exército da Salvação também montou uma escola primária, mas teve que fechá-la já que Hong Kong não reconhecia seu programa, excluindo os alunos das escolas secundárias públicas ou subsidiadas. Logo depois eles abriram um jardim de infância, educando crianças até a demolição da Cidade.
Mesmo assim, a principal maneira de alguém subir na vida lá dentro era através de uma educação técnica como aprendiz em pequenos negócios. Desde o início, jovens aprendiam noções financeiras e técnicas de negociação na prática, técnicas específicas em pequenos restaurantes, fábricas e lojas e, ainda, empreendedorismo ao abrir seus próprios negócios.
Os numerosos exemplos mostrados no “City of Darkness” apagam completamente o viés que a sociedade tem ao acreditar que estas pessoas são “pobres em conhecimento”: é apenas um tipo diferente de conhecimento, uma forma local e prática de pensar.
De qualquer forma, até hoje Kowloon, a Cidade Murada, ainda é lembrada pelos cidadãos de Hong Kong como um lugar misterioso, escuro e perigoso, com sua história contada através de lendas urbanas e rumores obscuros.
Como as favelas brasileiras ou de qualquer lugar do mundo, as pessoas ainda veem esses assentamentos informais como lugares a serem demolidos e substituídos por moradias governamentais, uma forma de maquiagem ao choque cultural das cidades ricas com a pobreza.
Como descreve Robert Neuwirth, as “cidades das sombras” são de fato bairros de verdade e centros de inovação, e Vivek Wadwa diz que as favelas brasileiras podem ser casa do próximo Mark Zuckerberg. Para mim tudo isso significa que temos que parar de ignorar e excluir essas comunidades, mas inclui-las, abraçando seus cidadãos e planejando nossas cidades com a liberdade que as faz prosperar.
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Te entendo. É que estamos tão acostumados a essa hiperrestritividade urbana que qualquer ideia de planejamento já me dá calafrios. E no final das contas o Glaeser não veio, né? Estou lendo o ‘Triumph of the city’, as ideias dele são bem interessantes.
Não, a apresentação dele foi por vídeo, pela internet. E ainda não cheguei a tempo, devo ter assistido 10min só da palestra dele. Nem sei se vale eu postar sobre a parte do Serra e da Manuela, eles não falaram nada muito relevante e fugiram um pouco do tema do livro, abordando mais as questões municipais que eles acham importantes. Não discordaram em praticamente nada.
“Para mim tudo isso significa que temos que parar de ignorar e excluir essas comunidades, mas inclui-las, abraçando seus cidadãos…”
– Isso não significaria colocá-las na mesma lógica de funcionamento do restante da cidade, assim matando a liberdade que faz com que essas comunidades – a seu modo – cresçam e prosperem?
“…e planejando nossas cidades com a liberdade que as faz prosperar”.
– A melhor forma de planejar com liberdade não seria simplesmente NÃO PLANEJÁ-LAS?
1) Elas são realmente pobres e dão abrigo para uma comunidade que não tem condições de morar na cidade. Mas ao regularizá-las normalmente o estado estabelece critérios construtivos e regulatórios bem mais brandos, e permite que este morador venda sua propriedade para investidores externos, que hoje é proibido (tenho um artigo extenso só sobre o tema da regularização fundiária, aqui no blog)
2) Qualquer ambiente construído terá regras para operar, assim como um condomínio, um shopping ou um loteamento tem suas regras. O que se percebe é que as regras urbanas de hoje são, de modo geral, ultra-restritivas, e devem caminhar em um sentido mais livre, que foi o que eu quis dizer. Um outro exemplo seria se empresas administrassem as ruas: elas certamente teriam um planejamento, que junto com as construtoras guiariam grande parte do desenvolvimento da cidade.
Te entendo. É que estamos tão acostumados a essa hiperrestritividade urbana que qualquer ideia de planejamento já me dá calafrios. E no final das contas o Glaeser não veio, né? Estou lendo o ‘Triumph of the city’, as ideias dele são bem interessantes.