A cidade linda
Imagem: Darren Harmon/Flickr.

A cidade linda

A beleza de uma cidade provém de sua vida, de como suas estruturas mantêm o fervilhar de pessoas nas calçadas e vias arteriais.

15 de dezembro de 2014

O que torna uma cidade linda? Não são seus parques ou sua arquitetura, por mais decorativos que possam ser. Não são os manequins vestidos em alta costura, ou as vitrines criativas. A beleza de uma cidade provém de sua vida, de como suas estruturas mantêm o fervilhar de pessoas nas calçadas e vias arteriais — pulsando como sangue dentro de um corpo. A beleza de uma cidade surge mais ou menos da mesma forma que toda beleza aparece na natureza: pela unidade de fenômenos aparentemente opostos.

“Os recursos que o bairro oferece para pessoas-índice imutáveis, sem corpo, são recursos para a instabilidade”, escreveu a grande observadora de cidades, Jane Jacobs. Para que uma vizinhança tenha um poder de permanência, Jacobs pensava, as pessoas que dela fazem parte devem mudar constantemente. Uma cidade só se torna estável através de um “aparente paradoxo”. Isto é, para conseguir que uma massa crítica de pessoas fique em um lugar, a cidade tem que ter “fluidez e mobilidade de uso”. Assim, a própria vizinhança deve mudar e se reorganizar de forma a manter seus residentes. Estabilidade e mudança. Cidades saudáveis exemplificam tais paradoxos.

As cidades também são produtos da atração e da repulsão. De alguma forma, essas forças estabelecem um equilíbrio. Negócios idênticos podem se repelir, mas negócios similares podem se atrair. Você normalmente não encontrará dois salões de beleza próximos uns dos outros, por exemplo, mas não é incomum encontrar um salão de beleza (manicure), uma loja de sapatos e uma loja de roupas lado a lado. Por que os restaurantes de fast food atraem-se mutuamente? E por que shopping centers parecem se estabelecer longe uns dos outros? Se você der uma olhada rápida no Google Maps você verá que os shoppings centers em uma região parecem estar à mesma distância um do outro — perto o bastante para reduzir os custos de transporte, longe o bastante para reduzir a competição. A presença de um shopping, por outro lado, atrai mais shoppings e mais restaurantes para a vizinhança. Essas forças de atração e repulsão trabalham juntas para criar as texturas, amenidades e estranhos centros de atividade em uma cidade.

Outra aparente contradição que Jacobs encontra nas cidades está na sua habilidade de reconciliar o desejo do morador tanto pelo privado como pelo social: “Uma boa vizinhança urbana consegue um equilíbrio tanto entre a determinação das pessoas de ter um mínimo de privacidade e seu desejo concomitante de poder variar seus graus de contato, prazer e auxílio mantidos com as pessoas que as rodeiam.”

Esses lugares públicos incentivam laços sociais mais fracos e, assim, criam condições para a vida pública. Vínculos mais fracos são as forças sociais criadas por cidadãos privados que interagem e se aglomeram nas ruas. É o sinal de bom dia ao rapaz de Bangladesh que cuida de sua banca de jornal diariamente. São trinta segundos de tiradas esportivas com o porteiro do trabalho. Nós acabamos sendo muito mais sociais quando nossos vínculos fracos dominam nossos instintos íntimos — tais como os laços que mantêm gangues de rua ou permitem que nações inteiras tolerem a purificação étnica. É claro que os vínculos familiares e de amizade são fortes, mas não se sabe ao certo se é saudável estendê-los à sociedade como um todo. Como no final das contas somos nós que escolhemos nossos laços, uma mistura saudável de vínculos fortes e fracos se originará em todas as escolhas que as cidades podem oferecer. Tais vínculos mudarão de acordo com as necessidades de cada um.


Ironicamente, quando os administradores urbanos tentam criar comunidades mais fortes por meio de subsídios, design ou decretos tais políticas só impulsionam as pessoas a se tornarem menos sociais — e às vezes, até antissociais.


Mesmo assim, algumas pessoas pensam que todos laços sociais têm que ser fortes para serem saudáveis — e talvez seja assim em certas circunstâncias. Mas a maioria dos projetos de obras públicas e “investimentos” comunitários são feitos em nome de um patriotismo cego ou do fortalecimento da comunidade. O problema é que uma comunidade verdadeira cresce de baixo para cima. E os laços mais fortes deveriam se originar da ajuda e de interesses mútuos — e não implementados por planejadores ou apontados pelos demagogos. Ironicamente, quando os administradores urbanos tentam criar comunidades mais fortes por meio de subsídios, design ou decretos, tais políticas só impulsionam as pessoas a se tornarem menos sociais — e às vezes até antissociais.

Por exemplo, cidadãos de baixa renda são essencialmente pagos para se empilharem em projetos habitacionais. A cultura de dependência lhes faz buscar apoio no Estado em vez dos seus vizinhos e ou das suas igrejas. Muitos recorrem ao crime e estabelecem conexões em gangues que têm interesse econômico no controle do território do mercado negro. Aqueles que se aventuram na vizinhança frequentemente se tornam alvos do crime — frequentemente porque os planejadores determinaram que a comunidade pode ser planejada e subsidiada. A comunidade começa a se dissolver, o que impede que aqueles vínculos fracos — as fibras de confiança — se desenvolvam. Em um círculo vicioso, outros efeitos negativos seguem: decadência urbana, apatia civil e mal-estar geral. Tudo isso se origina do conceito de que a vida das pessoas pode e deve ser planejada.

Mong Kok, Hong Kong. Foto por johnlsl @ Flickr
Mong Kok, Hong Kong. (Imagem: Johnlsl/Flickr)

Mas uma cidade livre e vibrante é um lugar de ordem e desordem, de unidade e diversidade, de competição e cooperação. É um caos ordenado. Nenhuma cidade é perfeita, e nem poderia ser. Mas como o colunista do Freeman, Sanford Ikeda, observa: “grandes cidades são ordens espontâneas hayekianas por excelência”. A beleza das cidades é a beleza de todas essas ordens — como os recifes de corais e as florestas tropicais. A mão invisível de Adam Smith também é um belo paradoxo, e a cidade é um símbolo vivo daquela “mão invisível” funcionando.

A beleza pode ser descoberta entre nossos instintos e nossa razão. Todas as ordens espontâneas estão “além do instinto e frequentemente opostas a ele, e o que está do outro lado […] incapazes de serem criadas ou pensadas pela razão”. Enquanto edifícios lindos são desenhados, as cidades lindas emergem.

Por que estou preocupado em mostrar que as cidades são lugares de paradoxo e, portanto, bonitas? Hayek argumentou no seu livro “A Arrogância Fatal” que humanos, que evoluíram para viver em grupos menores, podem se sentir desconfortáveis nos grandes centros urbanos, apesar do fato de que estes são benéficos. Dado que Hayek foi um dos pensadores pioneiros da ideia da ordem espontânea, muitos sugeririam que levássemos o que escreveu ao pé da letra. Mas deveríamos?

Outro na tradição da ordem espontânea, Francis Hutcheson — um professor de Adam Smith — definiu que algo é bonito se “existe uniformidade em meio à variedade”. Isso também é conhecido como unidade orgânica. Podemos aplicar essa ideia não somente a objetos, música e outras artes, mas ao mundo natural e aos sistemas sociais. Belas obras de arte e de literatura nos ajudam tanto a entender como viver bem dentro das ordens sociais espontâneas, e encontramos conforto nisso.

Desde os tempos dos antigos gregos, quando a beleza era associada à proporção áurea, passando pela unidade de variedade de Hutcheson, até os pensadores contemporâneos, como Frederick Turner, cujos trabalhos não poéticos tratam todos sobre a beleza, vemos um tema recorrente: a beleza emerge do paradoxo. E quanto mais paradoxos uma coisa tem, mais bela ela é. No equilíbrio entre vínculos fracos e fortes, competição e cooperação, o individual e o social, comunidades étnicas e mistas, atração e repulsão, em toda essa variedade dentro da própria cidade é que encontramos a beleza. Isso pode muito bem explicar porque nós, humanos, que buscam a beleza, estamos cada vez mais buscando a vida na cidade.

Artigo publicado originalmente em FEE.org em 30 de abril 2013, traduzido por Matheus Pacini.

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