A Bahia e suas gentrificações
Imagem: Dede & Mary/Flickr.

A Bahia e suas gentrificações

Confira como a Bahia reagiu às gentrificações em seu ambiente urbano e como os habitantes da região se comportaram diante desse processo.

21 de março de 2018

Há mais de 30 anos Flashdance levou multidões ao cinema, tornando-se uma das três maiores bilheterias no mundo naquele longínquo ano de 1983, contando a história da bailarina/operária que tenta realizar o sonho de se tornar uma estrela através do ingresso em uma famosa escola de dança. Alex, a personagem principal, interpretada por Jennifer Beals, mora em um imenso loft em Pittsburgh, Estados Unidos, instalado em um antigo galpão industrial em uma área central da cidade.

Tivesse havido uma continuação do filme, e sua personagem principal mantido o endereço, Alex poderia ser confundida com um agente desencadeador de gentrificação por quem não conhecesse a primeira parte: agora pertencente à classe artística, ela estaria perfeitamente enquadrada no grupo de estudantes, artistas e intelectuais que em geral esteve à frente do processo social e urbanístico identificado nos anos 60 primeiramente em cidades norte-americanas e inglesas, pelo qual áreas centrais degradadas ou em processo de desvalorização imobiliária, com uma estrutura arquitetônica-urbanística consolidada, muitas vezes construídas para outros fins, como é o caso do galpão industrial onde Alex mora, são convertidas em lugar de habitação e trabalho para “alternativos” — que tanto podem ser pessoas ligadas à área da cultura como minorias sexuais.

A ação dos alternativos no momento inicial do processo de gentrificação parece corresponder ao apelo feito por Jane Jacobs em seu clássico Morte e Vida de Grandes Cidades (no título original: Norte-Americanas), livro referencial para todo um discurso na área do urbanismo que irá defender a revalorização da estrutura tradicional do quarteirão urbano que abriga uma multiplicidade de usos contra a lógica do zoneamento funcional de expansão espacial da cidade modernista.

Sim, há algo de positivo na origem dos processos de gentrificação: ela pode ser vista como uma ação crítica a este padrão de planejamento urbano que tem entre suas premissas o desenho infindável de conjuntos habitacionais para pobres e subúrbios-jardins para ricos como motor da expansão urbana.

Pelourinho, Salvador, Bahia
Pelourinho. (Imagem: Carlos Mejía Greene/Flickr)

Mas a gentrificação é compreendida basicamente pelos seus efeitos negativos decorrentes de seu desenvolvimento: em uma dinâmica social que, se fosse possível ser descrita em termos de um gráfico, provavelmente se aproximaria à curva de uma progressão geométrica, um crescente interesse pela área diretamente relacionado à atratividade garantida pelos “moradores alternativos” — suas galerias de arte, seus restaurantes, suas lojas, sua ação individual de recuperação dos imóveis — o que gera uma contínua substituição da população e dos usos pregressos, em uma tendência que ao final é capaz de eliminar não somente todo o caráter do lugar como até mesmo os agentes originais do processo, ao atrair investimentos imobiliários de grande vulto, em algo que já é chamado de supergentrificação.

Nos centros das grandes cidades da América do Norte e da Europa não faltam exemplos nas últimas décadas que representem este fenômeno.

Seria então a reforma do Pelourinho um exemplo de gentrificação em Salvador no qual o Olodum e toda a cena do reggae nas terças-feiras em meados dos anos 80 atuariam como um dos agentes mais visíveis entre os desencadeadores do processo, ao conferir atratividade para o bairro? Provavelmente não: por um lado, o estado de degradação física a que o bairro e sua infraestrutura haviam chegado não foi capaz de gerar um processo contínuo de incremento na renda per capita ao atrair outros moradores para o local, por outro a ação autoritária e centralizadora do Estado, ao expulsar os moradores da região, não corresponde ao processo gradual de substituição da população ocorrido em sociedades mais liberais, estando efetivamente muito mais vinculada à violenta tradição de como os espaços de habitação dos mais pobres tem sido tratados pelo poder público na cidade, a exemplo da remoção de invasões como as de Ondina, Malvinas ou Costa Azul.

Por fim, mesmo para os moradores de baixa renda que conseguiram resistir no Pelourinho, há quase nada de infraestrutura de um bairro, tampouco outros residentes foram atraídos: a rasa e simplista destinação funcional, associada à má qualidade da intervenção na materialidade arquitetônica, é hoje um problema de escala compatível ao gesto do Estado há vinte anos.

Gentrificação corresponderia então ao processo que o bairro do Dois de Julho vem enfrentando? Dificilmente: a disputa entre os moradores, cujo perfil não sofreu grandes alterações nos últimos anos que viessem a gerar a curva ascendente de valorização e interesse decorrentes de novos serviços, e as empresas imobiliárias e de turismo, a serviço das quais o poder público municipal na última gestão chegou a propor um novo nome para o bairro, estabelece uma caracterização distinta se observarmos as investidas pesadas de construção no terreno da antiga boite clock como a continuidade das transformações geradas a partir da instalação da Bahia Marina e do reuso das estruturas dos trapiches para habitação de alto luxo.

Nem a fracassada reforma, que instalou pérgolas e piso intertravado em parte do Largo, correspondeu a qualquer alteração significativa de uso do local. Ainda que em um momento tivesse havido interesse de artistas em se instalar na região por volta de finais dos anos 90, à exceção da casa de Maria Bethânia e da Jam Session no MAM, seria difícil reconhecer outros agentes originais para uma gentrificação na região. Tampouco o próprio MAM, nem o Museu de Arte Sacra chegaram a impulsionar qualquer desenvolvimento neste sentido.

Em parte, o que há de novo no caso do Dois de Julho é um levante da população local na defesa de sua qualidade de moradia diante de um processo que em épocas não tão remotas descaracterizou e ainda descaracteriza bairros antigos como o Rio Vermelho ou Brotas: destruição contínua da estrutura arquitetônica dos bairros para fins comerciais sem acréscimo de qualidade de vida para a habitação, em um processo cujos possíveis controles estatais ou comunitários pouco atuam para o bem coletivo.

No fundo, a violência da reestruturação urbana imposta a algumas regiões consolidadas destes bairros tem na “remodelação” urbana sofrida pelo Horto Florestal mais pontos em comum do que o que se poderia imaginar.

Efetivamente, Salvador há muito pouco tempo esgotou os seus espaços não urbanizados para expansão de sua ocupação territorial, sendo a previsão da construção da ponte para a ilha de Itaparica o melhor sinal da lógica de continuidade de tal modelo.

Formal ou informalmente, a grande massa edificada sobre o solo urbano tem por lógica de ocupação a tábula rasa, seja das invasões a partir dos anos 40, seja dos conjuntos habitacionais do miolo da cidade ou da recente ocupação dos terrenos da paralela pelos condomínios de casas e apartamentos de alto valor. Agir dentro da cidade já estruturada é algo recente e na falta de uma cultura local, os agentes urbanos continuam operando com os modelos anteriores.

É assim que deve ser entendida, por exemplo, a ideia de que um único agente financeiro irá realizar a operação de “recuperação” dos mais de mil e quinhentos imóveis vazios no centro da cidade, como sugere o Escritório do Centro Antigo, seguindo os moldes da operação Porto Maravilha, em ação na região portuária do Rio de Janeiro.

Cabe finalmente ao bairro do Santo Antônio cumprir com a descrição de um processo que inclui uma mudança demográfica, cultural e social, aliado a uma progressão gradual da inserção do capital imobiliário. Em Salvador, nenhum outro lugar teve seu perfil social mudado de acordo com os ritmos e padrões de uso aos quais são feitos referência ao ser usada a denominação gentrificação.

Inclusive mais recentemente a compra de dezenas de imóveis por um único grupo financeiro pode ser entendida como uma potencial supergentrificação. O grande problema da forma indistinta com que a terminologia vem sendo usada é que qualquer ação de dimensão urbana, que venha a propiciar melhoria de condições espaciais em um bairro consolidado ou qualquer remoção de contingentes populacionais menos favorecidos política- e economicamente, corre o risco de ser posto na mesma lata de lixo genérica a que vem sendo localmente atribuído o nome de gentrificação.

Enquanto isso, significativas mudanças sociais em alguns bairros consolidados, como as que a expansão da UFBA vem gerando ao redor de seu campus, vem sendo pouco tematizadas. Enquanto isso, ecoam as vozes contra qualquer melhoria no Porto da Barra e o governo do Estado realiza na área do Porto no Comércio um edifício exatamente como o bairro não precisa. O nome do filme é Cinderela Baiana.

Texto publicado originalmente no site TeatroNu e na revista Minha Cidade, do portal Vitruivus.

Sua ajuda é importante para nossas cidades.
Seja um apoiador do Caos Planejado.

Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.

Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.

Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.

Quero apoiar

LEIA TAMBÉM

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.