Plano Diretor de Porto Alegre deve focar em áreas públicas | Entrevista com Anthony Ling
Foto: Breno Bauer/Jornal do Comércio

Plano Diretor de Porto Alegre deve focar em áreas públicas | Entrevista com Anthony Ling

"Idealmente, um Plano Diretor teria objetivos quantificáveis. Como é que vamos passar 10 anos e não saber se o Plano Diretor atingiu o seu resultado?"

19 de junho de 2025

Separar o Plano Diretor, que define as estratégias para o desenvolvimento da cidade, das regras para a construção dará “maior agilidade em atualizar essa lei ao longo do tempo, dado o caráter dinâmico de transformação da cidade”. A avaliação é do urbanista Anthony Ling. Esse modelo, adotado em São Paulo e outras cidades brasileiras, estará na proposta de revisão do Plano Diretor de Porto Alegre que a prefeitura pretende enviar ao Legislativo neste ano.

Editor do Caos Planejado, Ling é conhecido no meio empresarial e pela gestão municipal nos debates sobre planejamento urbano. Conceitos defendidos por ele estão refletidos em algumas das propostas já conhecidas da revisão, como a gestão municipal dedicar mais atenção às áreas públicas da cidade, conferindo maior liberdade para áreas privadas.

Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Ling alerta para que a discussão do Plano Diretor não seja como “apertar um reset na cidade” e começar tudo de novo a cada 10 anos ou mais. E para dar sentido à lei, defende traçar objetivos ao planejamento urbano e criar formas de mensurar se foram alcançados. “Idealmente, um Plano Diretor teria objetivos quantificáveis. Como vamos passar 10 anos e não saber se atingiu o seu resultado?”

Jornal do Comércio – Qual é o impacto para a cidade do atraso na revisão do Plano Diretor, como no caso de Porto Alegre?

Anthony Ling – O Plano Diretor, da forma como vem sendo conceituado no Brasil nos últimos 50 anos, é uma ferramenta de regulação de uso do solo. Em Porto Alegre compreende o Plano Diretor e o uso e ocupação do solo. Em São Paulo, por exemplo, são duas leis separadas. O Plano Diretor sozinho, pensado nesse conceito de separar as coisas, é praticamente inútil. Em termo práticos, porque é um documento cheio de desejos, objetivos e ambições que não têm nenhuma métrica. Como sabemos se deu certo, se deu errado? Normalmente é uma carta de intenções. Tanto que o já falecido urbanista Flávio Villaça chamou esse documento de “ilusão”. Em Porto Alegre, juntamos o Plano Diretor à Lei de Uso e Ocupação do Solo.

Leia mais: Plano Diretor: uma ferramenta obsoleta de gestão urbana

JC – O chamado Plano Regulador, parte do Plano Diretor…

Ling – Tem um efeito prático, definir o que pode e não pode ser construído nas áreas privadas. Isso é o que temos chamado de Plano Diretor, inclusive é até confundido esse documento com urbanismo: planejamento urbano é definir um Plano Diretor. Discordo bastante dessa visão de olhar planejamento urbano, porque está olhando somente para áreas privadas da cidade, que em teoria já possuem uma série de profissionais e agentes interessados para determinar o que é interessante ser feito em cada terreno. Ou seja, temos investidores, arquitetos, incorporadores, proprietários, pessoas que vão morar, clientes, comércios, empreendedores que interagem com essas áreas, comprando e vendendo, seja o imóvel ou serviços, que determinam – num processo de mercado – a alocação de uso desses espaços.

Então, existe um mecanismo que nos ajuda a entender o que deve existir ou não em cada terreno da cidade, mas não temos esse mecanismo para todas as outras áreas da cidade, que são áreas públicas. Como é a expansão viária? Como estamos usando as vias? Qual é a largura que deveria ter a nossa calçada, a via, as ciclovias? Como estamos efetuando a execução do Plano Cicloviário de Porto Alegre? Como é o saneamento básico nas áreas de favela? Como é o sistema de proteção contra enchentes e como isso norteia o desenvolvimento urbano? Isso tudo é, inerentemente, papel do poder público, é planejamento urbano. E praticamente nada disso entra na discussão de Plano Diretor.

Então, já de cara, vamos uma diferença de conceito e de prioridade em relação ao que a cidade está debatendo e o que a cidade está considerando planejamento urbano para o seu futuro. E quando vem para a realidade prática, esse Plano Diretor, como regulador de uso e ocupação do solo, basicamente influencia no mercado imobiliário formal. E é esse motivo pelo qual incorporadoras e investidores imobiliários se preocupam tanto com esse tema.

JC – Por quê?

Ling – Porque, se existe uma lei que pode, de um dia para o outro, aumentar ou diminuir o valor de terra, o valor de imóveis, imediatamente, sem nenhum tipo de compensação – ou seja, se alguém ganhar muito, vai ter alguma compensação para o governo, ou se alguém perder muito, vai ter alguma compensação no sentido inverso –, essas pessoas vão estar muito interessadas em saber o que vai acontecer e defender o seu próprio interesse.

Isso dito, o Plano Diretor não diz praticamente nada sobre como as áreas informais na cidade crescem, o que elas precisam ou como elas vão se desenvolver. E essas áreas informais não necessariamente precisam ser favelas. Tem áreas de favela que são de fato informais, ocupando muitas vezes áreas públicas, que não têm títulos de propriedade etc. Mas também sabemos que tem bairros inteiros em Porto Alegre que possuem uma legislação de uso do solo definida pelo Plano Diretor, mas que ao chegarmos lá são casas construídas da maneira que as pessoas acharam interessante naquele momento, que muitas vezes abrem seus pequenos comércios, pequenas indústrias, artesãos, enfim, criam animais, se pensar na Zona Sul. E o Plano Diretor não afeta nada a vida dessas pessoas. E se afetasse, talvez fosse negativamente, porque essas pessoas não poderiam fazer o que fazem hoje. Então, focar a discussão nessa determinação de o que deve ou não ser construído em terrenos privados e, na maioria das vezes, sem qualquer tipo de embasamento técnico, as brigas em relação a se posso construir mais ou menos em um determinado terreno, são determinações numéricas totalmente subjetivas. Totalmente.

Podemos discutir pormenores e conceitos desta revisão de Plano Diretor. Existe toda uma inércia regulatória e legislativa nas cidades brasileiras e até a compreensão que muitos urbanistas têm de que isso é planejamento urbano. Mas o trabalho que fazemos, pelo menos no Caos Planejado, é tentar mostrar que não necessariamente isso é planejamento urbano, ou não apenas isso. E as prefeituras deveriam estar dando prioridade muito maior a outros aspectos que hoje são esquecidos pelo planejamento, que traz o problema da informalidade, da falta de infraestrutura em favelas, da moradia precária, de a gente ter 90% das ruas sendo ocupadas por carros. Cadê essa discussão no Plano Diretor? Ela inexiste.

JC – A prefeitura de Porto Alegre indica que sim, haverá essa separação entre um Plano Diretor estratégico e uma lei normativa, que vai ser a Lei de Uso e Ocupação do Solo. O que impacta, na prática, essa divisão?

Ling – Conversando com alguns juristas da área do Direito Urbanístico, inclusive o Victor Carvalho Pinto, que foi um dos especialistas consultados para a elaboração do Plano Diretor, a argumentação é de que, ao separar Plano Diretor e Lei de Uso e Ocupação do Solo, tem maior agilidade em atualizar essa lei ao longo do tempo, sem precisar de uma revisão completa, tanto do Plano Diretor como da Lei de Uso do Solo, dado o caráter dinâmico de transformação da cidade. Via de regra, pensando no histórico do planejamento urbano no Brasil, é quase sempre o caso que se passam 10 anos ou mais sem revisar, e aí temos determinações de usos e regulações que não conversam mais com a realidade da cidade. Por mais que as leis já nasçam arbitrárias na sua origem, imagina 10 anos depois o quanto elas dialogam com a necessidade das pessoas. É mais uma questão de facilitar a gestão pública na revisão dessas leis ao longo do tempo. Embora, se não houver uma conversa direta entre uma lei e a outra, o Plano Diretor pode ficar algo sem propósito.

Idealmente, um Plano Diretor teria objetivos quantificáveis. Às vezes se fala em Plano Diretor no âmbito do urbanismo e esquecemos o que é um plano. Temos planos como indivíduos. Traçar um plano e ter um resultado que se consiga entender, a partir dele, se foi um sucesso ou não e para que caminho está indo. Os nossos Planos Diretores não nos dão isso. Tanto que normalmente começa uma discussão de Plano Diretor e parece que alguém apertou um reset na cidade. A cidade não existe mais, a legislação não existe mais e vamos ver agora o que queremos de novo. É um ciclo meio improdutivo, definimos um plano sem metas e sem objetivos claros, passam 10 anos e o criamos um novo, também sem objetivos e metas claras. Como vamos passar 10 anos e não saber se o Plano atingiu ou seu resultado? Seria imprescindível até para se caracterizar como um plano, na definição mais stricto sensu da palavra.

JC – A prefeitura apresentou uma proposta de olhar mais para o espaço público e menos para o espaço privado, para o lote…

Ling – Eu concordo com essa visão conceitual, (mas) acho difícil que consigam fazer isso na prática.

JC – Por quê?

Ling – Justamente por carregar essa bagagem. Se a prefeitura dissesse “vamos mudar totalmente a conceituação do que é o uso do solo na cidade, não vai mais ter limite de potencial construtivo, vamos deixar os usos meio que em aberto na cidade inteira, vamos trabalhar mais por incomodidades do que por usos propriamente ditos…” Isso é uma discussão.

Quando se começa a querer detalhar os usos de uma Lei de Uso e Ocupação do Solo, é um trabalho quase esquizofrênico. O que é residência e o que é trabalho? Muita gente trabalha de casa hoje, então é trabalho ou é residencial? Uma padaria é uma indústria ou é um comércio? Essas definições não são tão claras. O que a legislação tenta fazer e o que tem acontecido ao longo dos anos é elas ficarem cada vez mais minuciosamente detalhadas. Por exemplo, o tamanho da varanda define se ela vai contar ou não como uma área construída. Isso tem alguma relevância nos problemas da cidade? Zero. Absolutamente zero. E se formos mais a fundo e pensar “será que o pensamento de quem faz a cidade está sendo destinado para melhorar a vida daqueles que mais precisam de planejamento urbano?” E não, na verdade estamos discutindo essas minúcias.

JC – Porto Alegre tem esse risco de cair no detalhamento?

Ling – No momento em que temos regramentos específicos e minuciosos do espaço privado, isso vai acontecer. E vai deixar de acontecer no momento que percebermos que isso não é relevante do ponto de vista da cidade como um todo. Vejo alguns, vou chamar assim, críticos dessa forma de pensar, que dizem “poxa, mas Anthony, veja bem, temos bairros residenciais da cidade que têm uma certa característica”. Só que esse tipo de pensamento não está pensando na cidade como um todo, está pensando no bairro, na vida das pessoas imediatamente ao redor de onde está o terreno que o empreendimento tem. É uma visão egoísta da cidade. Algo como “eu prefiro que não tenha um adensamento de regiões como o Três Figueiras, a Chácara das Pedras, o Boa Vista”, que são áreas de baixa densidade, super bem localizadas – pela proximidade a empregos e serviços. “Prefiro que as pessoas morem mais distante”. E sabemos que hoje devem ter mais de 100 mil pessoas que vão e voltam da Região Metropolitana para trabalhar em Porto Alegre, por uma questão de acessibilidade habitacional. Porto Alegre expulsou pessoas da cidade porque (alguns) acham que vai mudar a característica do bairro.

Leia mais: Porto Alegre, uma Nova York encoberta pelos Planos Diretores

JC – A prefeitura concedeu estímulos à construção civil, especialmente no Centro e 4º Distrito, que tiveram planos específicos. Como fazer que esse investimento da iniciativa privada atenda a demanda mais necessária? A enchente mostrou que há carência de habitação para a população de baixa renda…

Ling – Porto Alegre ficou 30, 40 anos como uma das capitais com menor potencial construtivo na sua regulação urbanística, principalmente em áreas bem localizadas. Esse processo foi extremamente nocivo ao crescimento, ajudou a cidade a reduzir sua relevância econômica. Por muitos anos, se tornou mais caro morar aqui, as pessoas começaram a ir embora… Outro ponto pouco compreendido é que o que está sendo construído hoje – mesmo o Minha Casa Minha Vida – normalmente não vai ser opção para pessoas mais pobres da cidade, porque são produtos novos. É que nem carro, moto ou qualquer bem novo, vai custar mais caro. Precisa de outros programas para endereçar a quem mais precisa, seja através de doações diretas, como Bolsa Família, ou melhorias substanciais de infraestrutura nas comunidades onde elas já vivem.

Artigo publicado originalmente em Jornal do Comércio, em junho de 2025.

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