Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
A política pode desempenhar um papel fundamental na adoção de veículos autônomos para que apoiem, em vez de minar, o transporte urbano.
6 de setembro de 2021Parece que os veículos autônomos farão mesmo parte do futuro do transporte urbano. E há muita discussão sobre quais serão seus efeitos — e se serão benéficos ou não.
Embora haja um certo caráter “tecnodeterminista” nessas especulações, acredito que o ambiente político pode desempenhar um papel fundamental na adoção de veículos autônomos (VAs) para que apoiem, em vez de minar, o atual sistema de transporte e a estrutura viária das cidades.
Nosso pensamento ainda está evoluindo sobre esse assunto, mas, para iniciar a conversa, apresento 13 reflexões sobre viagens urbanas, veículos autônomos e o que precisaremos fazer para mudar nossas políticas e instituições para nos preparar para eles.
Considerando que muitos dos problemas que persistem em nosso sistema de transporte vêm de erros de precificação, a maneira como os veículos autônomos irão alterar o custo e o preço dos modais urbanos será a chave para moldar seus impactos.
Nosso sistema de transporte, como regra, ainda tem bastante capacidade de expansão em vinte das vinte e quatro horas diárias.
Isso acontece porque tendemos a viajar nos mesmos horários, nos picos da manhã e da tarde. Geralmente numa janela de uma a uma hora e meia pela manhã, e de duas e meia a três horas no final da tarde.
Como Jarrett Walker observa, este é um problema de geometria, veículos de ocupação única não são suficientemente eficientes em termos de espaço para acomodar todos os viajantes em períodos de pico na maioria dos ambientes urbanos.
Mas esse é mais precisamente um problema de “espaço-tempo”: não temos espaço suficiente em determinados momentos.
As análises de adoção e implantação de veículos autônomos geralmente não levam essa questão em consideração. O pico de demanda tem implicações importantes: mais valor econômico está associado às viagens nos períodos de pico do que às viagens em outros horários do dia, devido ao seu volume e natureza.
A demanda por viagens no período de pico é mais inelástica. Os viajantes costumam suportar tempos de viagem mais longos nos horários, em vez de simplesmente aguardar para fazer essas viagens em outro momento, quando o congestionamento é menor e os tempos de viagem são mais curtos.
Estamos mais dispostos a enfrentar 5 ou 10 minutos extras em nosso trajeto viajando em horário de pico, do que esperar uma hora ou noventa minutos para encurtar o tempo da nossa viagem.
Onde o estacionamento é “gratuito” para os usuários finais, é muito mais provável que eles dirijam até lá. Os custos de possuir carros são, em grande parte, fixos (depreciação, seguro), e o custo marginal de fazer uma viagem costuma ser visto apenas como o gasto incremental de combustível.
O principal custo adicional para muitas viagens, especialmente em ambientes urbanos, é o de estacionamento. O custo das vagas no centro das cidades é um grande incentivo ao uso de outros meios de transporte.
Existe uma correlação muito forte entre os custos de estacionamento e o uso do transporte público. Com efeito, os custos de estacionamento atuam como um mecanismo substituto de tarifação de estradas para viagens com origens ou destinos no centro da cidade.
Nesse sentido, os veículos autônomos reduzirão muito ou eliminarão totalmente o custo do estacionamento como um fator na escolha do modo. Muitas pessoas que não iriam de carro até o centro, a fim de evitar esse gasto, escolheriam os veículos autônomos.
O custo pode ser algo na ordem de 30 a 50 centavos de dólar por milha (podendo ser consideravelmente menor).
A maioria das viagens de transporte público tem menos de seis quilômetros de distância. E grande parte das tarifas ultrapassa dois dólares por viagem. Os VAs podem ter custos competitivos e, potencialmente, oferecer um serviço muito melhor (viagens ponto a ponto, menos espera, privacidade, maior conforto).
É justo presumir que a implantação generalizada de frotas de VAs estimulará uma enorme demanda por viagens urbanas. Tanto entre as famílias com carros que atualmente não dirigem por causa dos custos de estacionamento (porque o estacionamento será reduzido a zero), como por aquelas que possuem carros e dirigem diariamente (porque podem evitar o custo do estacionamento).
Por outro lado, onde o estacionamento é gratuito e a densidade é baixa, o serviço de frotas de VAs será uma opção muito menos atraente para os viajantes e um mercado muito menos lucrativo para os operadores.
Como não precisam pagar pelo estacionamento atualmente, os passageiros não economizam esse custo ao pagar por um veículo autônomo. Além disso, áreas menos densas serão, por definição, mercados menores para compartilhamento de carros.
Para as empresas isso significa menos receita por milha ou por hora e menor utilização; para os clientes, significa uma espera mais longa pelos veículos. Pessoas que vivem e trabalham em áreas de baixa densidade podem achar mais atraente possuir seu próprio veículo.
Lá os mercados são mais densos. Os desafios técnicos de mapear a rodovia são mais finitos e o custo do mapeamento pode ser distribuído por mais viagens por quilômetro rodado. E, o mais importante, eles poderão aumentar os preços nesses locais.
Isso é possível porque a demanda por viagens, principalmente no horário de pico, é maior (mais gente viajando) e as pessoas valorizam mais o tempo de viagem. As empresas vão querer concentrar suas frotas em locais com muitos clientes, tanto para otimizar a utilização (menos viagens sem passageiro) e também para maximizar a receita (viagens com preços elevados são mais lucrativas do que tarifas regulares).
Ainda mais do que hoje. Mais passageiros procurarão viajar de veículo autônomo e os operadores da frota irão concentrar seus veículos em locais lucrativos e densos.
Enquanto os VAs podem custar apenas 30 a 50 centavos de dólar para operar, o aumento de preços em ambientes urbanos densos podem ser muitas vezes mais altos do que esse valor.
Os operadores usarão preços dinâmicos para racionar veículos para os usuários de maior valor. Aqueles que gostariam de viajar por VA terão que escolher outros modos ou horários (andar de transporte público; pagar o preço do estacionamento e dirigir seu próprio carro, esperar por um veículo autônomo mais barato fora do horário de pico, caminhar, andar de bicicleta). Os veículos autônomos tenderão a preencher a capacidade rodoviária existente.
Os preços resultarão em uma alocação mais eficiente do uso da estrada entre os usuários (em um sentido técnico, abstraindo das questões de distribuição). Mas os lucros dessa capacidade limitada irão para os operadores e não para o setor público, que é responsável pela construção e manutenção da rodovia. E que normalmente é solicitado a incorrer em enormes despesas para acréscimos de capacidade para diminuir o congestionamento.
O imposto sobre a gasolina é a principal fonte de receita para a construção e manutenção de estradas. VAs elétricos não pagam nada na maioria dos estados para custos de estradas. Uma marca registrada das atuais empresas de rede de transporte são suas políticas “perturbadoras” de evitar (ou mudar) as taxas e impostos cobrados sobre os táxis convencionais. Presumimos que esse comportamento continuará.
Ao contrário dos veículos típicos, que, como amplamente observado, ficam estacionados em mais de 90% do tempo, os veículos autônomos receberão um uso muito maior. Além de que tenderão a gravitar em direção aos mercados mais densos e, devido ao aumento de preços, serão atraídos para a maioria dos locais congestionados.
Com os impostos sobre o combustível, os veículos privados pagam o mesmo custo por quilômetro pelo uso das estradas, quer usem vias com pouco tráfego fora dos horários de pico, quer usem vias urbanas congestionadas nos horários de pico.
Conforme observado, os custos de estacionamento efetivamente desencorajam o uso nos horários de pico em locais densos. E, até certo ponto, o uso de carros fora dos horários de pico e de baixa densidade significa que algumas estradas subsidiam outras.
As taxas de estacionamento e a propriedade privada de carros têm, de fato, limitado a capacidade dos carros de sobrecarregar as ruas da cidade. Essas duas restrições serão amplamente eliminadas por frotas de veículos autônomos.
O imposto sobre a gasolina não funciona para veículos elétricos. As taxas vinculadas simplesmente à energia consumida ou aos quilômetros percorridos ignoram os custos de sistema muito diferentes impostos pelas viagens em lugares e horários variados.
A taxa VMT (Vehicle-miles Traveled, em português, milhas percorridas por veículo) ainda permite que os operadores de frota privada capturem todo ou a maior parte do aluguel econômico associado à alta temporada em áreas urbanas densas e não fornece receita adicional para lidar com as restrições de capacidade do sistema de transporte ou rodovias.
A principal restrição ao desempenho do sistema de transporte urbano é a capacidade nos horários de pico. Os veículos de ocupação única representam uma forma altamente ineficiente de aproveitar a capacidade muito cara desses horários.
Sem aumento de preços para estradas, os operadores de frotas de VAs têm fortes incentivos para capturar os aluguéis econômicos associados às viagens em período de pico, transferindo custos e externalidades para o setor público e viajantes não usuários.
Uma vez implantados, os operadores terão um incentivo poderoso para lutar contra o aumento de preços, pois isso realocará os aluguéis econômicos deles para o setor público.
Artigo publicado originalmente em City Observatory em 27 de março de 2017. Traduzido por Gabriel Lohmann.
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