Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Em Ordem sem Design, Alain Bertaud oferece uma visão que valoriza os mercados como instrumentos para produzir cidades mais eficientes, prósperas — e acessíveis.
25 de setembro de 2023Ordem sem Design: Como os mercados moldam as cidades, do urbanista francês Alain Bertaud, pesquisador sênior no Marron Institute of Urban Management, na Universidade de Nova York, pode, sem favor algum, figurar nas prateleiras mais altas das estantes de estudos contemporâneos dedicados a refletir sobre planejamento urbano. Publicado originalmente em 2018, o livro foi traduzido para o português pela editora Bookman e lançado este ano nas cidades de São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e Florianópolis, com o apoio da plataforma Caos Planejado, do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e do Instituto Cidades Responsivas. Bertaud participou presencialmente dos eventos de lançamento, nos quais proferiu palestras, respondeu a perguntas e autografou exemplares da obra — esteve no Insper em abril, na sua passagem pela capital paulista. O livro oferece um novo paradigma de política urbana, que valoriza o mercado como elemento indispensável para o bom funcionamento das cidades. Suas teses são embasadas não apenas em sólida teoria, mas fundamentalmente em uma experiência adquirida ao longo de cinco décadas de uma carreira notável, das quais duas no Banco Mundial, incluindo posições de urbanista residente em sete cidades e de consultor em outras 50, de países ricos e pobres.
Em sua obra, Bertaud desafia conceitos estabelecidos de política urbana, como a promoção de cidades compactas, a luta contra veículos motorizados, o combate ao espraiamento urbano, a adoção do desenvolvimento orientado ao transporte e o controle de densidade pelo zoneamento.
A crítica não é centrada tanto nos conceitos enquanto tais e sim em sua generalização para todas as situações e localidades. No centro da argumentação do autor está o entendimento de que as cidades são, antes de mais nada, mercados de trabalho, cabendo à política urbana garantir que as pessoas possam alcançar o maior número de empregos, por meio de habitação acessível e mobilidade eficiente.
O primeiro capítulo estabelece um contraponto entre as visões de economistas e urbanistas sobre a cidade. Nele, Bertaud defende que, enquanto os urbanistas tendem a ver a urbe como um edifício em grande escala, que pode ser projetado, economistas consideram fundamental observar a realidade, a partir de indicadores quantitativos.
Ele sustenta que preços são indispensáveis para orientar a alocação de espaço entre diferentes usos e que a regulação urbanística em geral impede o bom funcionamento dos mercados. Essa perspectiva é enriquecida por exemplos extraídos de sua própria carreira, em nações tão diversas como Argélia, Haiti, China e Rússia. Bertaud ressalta que os urbanistas precisam aprender conceitos econômicos para entender melhor o funcionamento das cidades e, em contrapartida, sugere que os economistas participem mais ativamente da administração pública.
No segundo capítulo, o autor desenvolve a ideia de urbes como mercados de trabalho. A proximidade entre empresas e indivíduos com talentos e conhecimentos distintos, diz ele, é a verdadeira razão de ser das cidades, e essa proximidade fomenta a inovação. Bertaud argumenta que, quanto maior o mercado de trabalho, maior é a eficiência.
Ele critica as propostas de descentralização da urbanização por meio do planejamento regional, assim como a tentativa de criar mercados de trabalho por bairro. Em vez disso, propõe a gestão do crescimento urbano por meio da política de mobilidade, a fim de permitir que todos se beneficiem do grande mercado de trabalho representado pela urbe como um todo.
No terceiro capítulo, Bertaud explora a dinâmica entre mercado e planejamento centralizado na formação das cidades. Afirma que as restrições de zoneamento podem impedir a resposta eficaz do mercado à demanda, impedindo a verticalização eficiente das áreas centrais.
Ele sugere que o planejamento urbano deveria permitir flexibilidade no uso do solo para evitar a decadência econômica. O autor argumenta que o planejamento urbano deveria se voltar prioritariamente para a infraestrutura de transportes, a gestão de espaços públicos e a proteção de paisagens naturais e do patrimônio histórico, em lugar de regular em detalhes a ocupação de lotes privados.
Finalmente, Bertaud enfatiza a importância de monitorar variáveis urbanas como preços de terrenos, aluguéis e tempo de comutação para orientar a regulação e investimento urbanos. Ele destaca a importância de garantir a elasticidade da oferta de área construída e de reduzir os custos de transação no licenciamento urbanístico e nas transações imobiliárias.
No quarto capítulo, Bertaud analisa como a teoria econômica explica a distribuição espacial de densidades e preços de imóveis nas urbes. Ele também defende a aceitação do crescimento horizontal e da verticalização das áreas centrais, para manter a oferta de moradia elástica e os preços acessíveis.
O autor alerta que a falta de elasticidade pode resultar em preços de moradia mais altos ou informalidade e enfatiza que as regulamentações não devem impedir a construção de moradias acessíveis à população de baixa renda. Argumenta que o espraiamento urbano deve ser contido pela supressão de subsídios ao transporte individual e não por meio do zoneamento.
O quinto capítulo do livro aborda a interconexão entre mobilidade e desenvolvimento imobiliário, destacando a necessidade de eficiência no transporte para ampliar o ingresso no mercado de trabalho e oferecer moradia acessível para a população de baixa renda.
Ele critica a cultura de subsídios, especialmente para automóveis, que não arcam com os custos reais da infraestrutura viária e os impactos ambientais. Para equilibrar isso, enfatiza a urgência de implementar mecanismos de cobrança pelo uso do sistema viário, tarifas de congestionamento e preços dinâmicos por estacionamento no meio-fio.
No sexto capítulo, sobre política habitacional, Bertaud destaca a complexidade do equilíbrio entre aluguel, área construída e localização. Segundo ele, a localização, sendo menos tangível, muitas vezes é desconsiderada nas políticas públicas, a começar pelo conceito de déficit habitacional, que considera apenas preços de aluguel e padrões construtivos.
Contrariamente a essa abordagem, o autor defende que o morador deva ter a autonomia de tomar decisões sobre onde e como morar. Remoções de favelas e conjuntos habitacionais distantes falham por desconsiderar a escolha do morador. Para propiciar acessibilidade habitacional, Bertaud sugere liberdade para o mercado atender às demandas específicas dos consumidores; eliminação de padrões mínimos rígidos de moradia, permitindo mais variedade e adaptabilidade, mediante revisão e atualização periódica de regulamentos.
Os investimentos públicos, por sua vez, deveriam ser direcionados para a urbanização de favelas e vouchers de habitação, permitindo ao beneficiário escolher onde morar, em lugar da construção de conjuntos habitacionais, que impõe a todos uma solução única de atendimento.
No sétimo capítulo, o autor critica diversas utopias urbanas, sustentando que não há um valor único a ser perseguido pelo urbanismo, e adverte para os efeitos colaterais desse tipo de política, como a restrição à oferta e o encarecimento dos imóveis.
Ele se posiciona contra a rigidez dos regulamentos urbanos que tentam padronizar soluções para uma variedade de contextos, argumentando que as exigências devem ser estabelecidas caso a caso, adaptando-se ao contexto específico de cada empreendimento, e que é preciso permitir que o uso dos imóveis seja adaptado a novas demandas.
Em contraposição ao conceito de “cidade compacta”, por exemplo, ele sustenta que a expansão urbana pode ser justificada quando ocorre um aumento de renda, uma redução dos custos de transporte ou uma diminuição no preço da terra agrícola. O importante é eliminar os incentivos indiretos ao espraiamento, mediante o fim de subsídios aos combustíveis e cobranças de tarifas de poluição e o congestionamento, realinhando o custo do transporte individual com seu impacto ambiental e social.
No oitavo e último capítulo, Bertaud apresenta sua proposta para atuação dos órgãos de planejamento urbano. Ele sugere que o planejamento centralizado seja limitado à gestão da infraestrutura e à expansão do sistema viário, no entanto direcionado pela demanda do mercado e apoiado por dados precisos.
Em vez de planos diretores estáticos, o autor propõe uma gestão urbana dinâmica, respondendo às necessidades com base em indicadores. Sugere uma base de dados georreferenciada unificada para todas as secretarias municipais, enfatiza a necessidade de testar novas regulações em áreas específicas antes de sua adoção em larga escala e chama atenção para novos desafios, como o envelhecimento da população e cidades em declínio populacional.
Um dado impressionante para o leitor brasileiro é a perfeita aderência dos conceitos de Bertaud à nossa realidade. Praticamente todas as distorções por ele apontadas estão presentes nas cidades do país: regulações urbanísticas e edilícias antigas, sobrepostas e sem monitoramento de impacto; conjuntos habitacionais localizados em áreas distantes, nos quais os beneficiários não querem morar; planos diretores genéricos e desconectados da gestão pública; ausência de indicadores e desconsideração de impactos econômicos na tomada de decisões.
O encarecimento da moradia, a informalidade e a degradação de áreas centrais, consequências diretas da rigidez regulatória, que impede o mercado de atender à demanda nas áreas dotadas de infraestrutura e de mudar o uso dos imóveis conforme a necessidade, também se fazem presentes no Brasil.
A agenda proposta pelo autor, por sua vez, parece viável e promissora: ênfase na acessibilidade da moradia e na garantia de mobilidade, especialmente para a população de baixa renda; simplificação da regulação, monitoramento da cidade por meio de indicadores georreferenciados; eliminação de subsídios ao transporte individual e melhoria da infraestrutura e dos espaços públicos.
Ordem sem Design oferece, assim, uma perspectiva inovadora e robusta sobre o desenvolvimento urbano, fundamentada na vasta experiência de Bertaud. O livro é uma leitura essencial para quem busca uma visão mais crítica ao planejamento urbano tradicional e deseja compreender como os mercados podem contribuir para a criação de cidades mais eficientes, prósperas — e acessíveis.
Publicado originalmente no Insper em agosto de 2023.
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