A importância socioeconômica do avanço do saneamento nas cidades brasileiras
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Se hoje o Brasil começasse a urbanizar uma favela por semana, demoraríamos 230 anos para integrar todas as favelas e comunidades às nossas cidades. 230 anos. Ou seja, teríamos de aguardar nove gerações. Por isso, precisamos falar com urgência de soluções transitórias.
27 de março de 2025Os 230 anos refletem apenas um exercício, já que não se urbanizam favelas em uma semana. A Fundação João Pinheiro (FJP) estima um déficit habitacional quantitativo (domicílios a serem construídos) superior a 6 milhões de unidades e qualitativo (domicílios a serem adequados) superior a 25 milhões. Dados do Censo de 2022 indicam que as favelas e comunidades mais que duplicaram nos últimos 10 anos, passando a ser pelo menos 12.348 em 2022, onde residem mais de 16 milhões de pessoas.
O cálculo do déficit deveria ser analisado juntamente com previsões futuras de estoque habitacional, contemplando questões como os deslocamentos devido à crise climática, migração, envelhecimento populacional, população em situação de rua e novas configurações familiares. Ainda não entraram na conta os 420.100 domicílios atingidos pelas enchentes no Rio Grande do Sul e talvez boa parte dos 8 milhões de pessoas que já viviam em áreas de risco em 2010, segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN). O déficit, que olha apenas para o passado, cresceu 4,2% de 2019 a 2022. Qual o seu tamanho em 2025?
Quem mora nas periferias corre maiores riscos de sofrer com eventos extremos, como vimos na pandemia e presenciamos diariamente com o aumento dos efeitos desiguais da crise climática. Sem infraestrutura adequada, as pessoas experienciam taxas mais altas de doenças e mortalidade prematura do que aquelas em áreas das cidades que estão formalizadas e integradas.
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Contemplando o déficit, a demanda habitacional futura e o aumento de risco com a crise climática, queremos focar esta discussão em um recorte específico de famílias, nomeadamente aquelas que vivem em emergência habitacional. Este é um dos recortes mais duros e invisibilizados na nossa sociedade, a realidade dos que vivem em um barraco de madeira reaproveitada. A FJP estima que existam mais de 1,6 milhões de moradias em condições de absoluta precariedade, ou seja em emergência habitacional. Condições que reduzem o tempo de vida e minam a saúde mental e física. Pouco ou quase nada se fala sobre essas pessoas e famílias inteiras, na sua maioria lideradas por mulheres negras, que estão condenadas a sobreviver nessa realidade.
Temos um bloqueio não só com questões habitacionais, mas também com soluções transitórias. Hoje, além de não termos um plano nacional de habitação efetivo, tampouco temos políticas públicas ou programas que priorizem as pessoas nos territórios mais vulnerabilizados, ou seja, favelas e comunidades onde uma grande parte das pessoas ainda vive em um barraco. Uma consequência é certa: os números seguirão crescendo e a dinâmica da questão habitacional se tornando mais e mais complexa.
Se o desafio é multidimensional, a resposta também precisa ser. Se analisarmos os 6,2 milhões de domicílios que compõem o déficit quantitativo, 27% do total (1,6 milhões) são classificados como precários, sendo 9,7% rústicos, — aqueles autoconstruídos para fins habitacionais, mas com materiais impróprios e não duráveis, como madeira reaproveitada e sucata — e 17% improvisados, — que não foram construídos para finalidade habitacional, mas servem como habitação, como barracas, barcos, pontes, carros e até cavernas. Estamos realizando ações adequadas para as componentes de maior precariedade?
Há tentativas como a do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), o mais amplo programa habitacional da história do país, que em cerca de 15 anos chegou a 8,4 milhões de unidades, porém que sequer arranhou o déficit. Estaríamos muito piores sem ele, pois projeções apontam que o déficit habitacional quantitativo poderia estar superando 8 milhões de unidades em 2019 se não fosse o PMCMV.
O número, porém, é pequeno e lento — cerca de 700.000 unidades por ano. Além disso, apenas 30% do total se destinou para a população de menor renda, a faixa até 1 salário mínimo, mesmo que 75% do déficit se concentre nela — 4,6 milhões em 2022. No mesmo ritmo de construção atual, levaríamos 22 anos para vencer o déficit na faixa 1, caso ele não aumentasse uma unidade sequer.
E qual é então a resposta para comunidades que, além da precariedade habitacional, acumulam simultaneamente outros déficits, como o fundiário e de infraestrutura? Nenhuma, fora a invisibilidade ou a remoção.
As soluções transitórias entram nesse nó. Moradias com um caráter modular, de baixo custo, adaptadas às realidades materiais das famílias e também ao complexo imbricamento de precariedades e déficits. Elas figuram como uma alternativa complementar e estratégica à própria produção tradicional de Habitação de Interesse Social (HIS) e devem ser alvo do investimento público.
É complementar porque pode compor o quadro de respostas à complexidade habitacional. A produção Estatal é mais lenta que o crescimento das precariedades e as alternativas atuais são insuficientes. Nesse descompasso, milhões de brasileiros irão nascer e morrer em domicílios precários inadequadíssimos.
É estratégica pois pode ser um estágio intermediário, um mínimo vital de moradia para a população que vive um cenário dramático, na lama, perdendo bens materiais a cada chuva, convivendo com insetos e roedores, sem renda, com severos prejuízos à saúde mental, saúde física, à expectativa de vida e ao desenvolvimento infantil. Hoje, não sabemos os custos gerados para o sistema de saúde e outras políticas públicas.
Além disso, isso permitiria:
O próprio Estatuto da Cidade oferece espaço na política urbana para viabilizar alternativas transitórias, como em seu Art 2º, Inciso XIV, que dispõe sobre o “estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação” nas áreas ocupadas pela população de baixa renda.
Investimentos adicionais e parcerias para normatização e certificação de modelos precisam ser acelerados, bem como a priorização a nível municipal de situações onde é cabível a implementação de soluções transitórias. Essa alternativa não deve reduzir os já limitados investimentos em habitação, mas somar recursos para responder a uma realidade urgente sem alternativas na política pública. A recomendação é integrar propostas já avançadas, como as do terceiro setor, que oferecem respostas emergenciais e podem inspirar políticas públicas.
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Nesse sentido, há um exemplo factível, escalável e bem sucedido próximo de nossas realidades: o módulo transitório “Moradia Semente”, que surge dessa complexa e comprometida discussão teórica, visando o apoio e empoderamento de famílias nas situações mais dramáticas do país.
O projeto eleva as condições de habitabilidade em favelas por meio de um modelo modular e adaptável focado em famílias com graus elevados de vulnerabilidade, que não pagam pelo projeto. A moradia é composta por módulos associados, podendo variar entre 18 m² e 72 m² para se ajustar a diferentes terrenos e necessidades.
O desafio habitacional se complexificou e nossas respostas seguem lentas e insuficientes. O Brasil precisa de uma mescla de soluções e de formas de financiamento, ou seja, de uma abordagem multidisciplinar a ser enraizada na realidade do nosso país e que priorize a população mais vulnerabilizada dos territórios que enfrentam os maiores riscos de perda material e de vida.
Além disso, o plano de habitação, que deveria ter ficado pronto em 2022, precisa contemplar uma visão de longo prazo, ter um comprometimento de Estado e suprapartidário, além de ser amplamente discutido entre todos os setores, já que os desafios urbanos se entrelaçam com inúmeros outros temas e desafios. Precisamos ver a habitação como a porta de entrada para os outros direitos e, dessa forma, tratar o desafio habitacional brasileiro como uma oportunidade para escrever uma história diferente para as nossas cidades: onde urbanização e integração sócio urbana aconteçam e as pessoas mais vulnerabilizadas não sejam ignoradas e abandonadas, admitindo que soluções transitórias são necessárias.
Camila Jordan esteve 5 anos como CEO e atualmente está como Diretora de Relações Institucionais e Incidência na TETO Brasil, organização que envolve centenas de jovens voluntários e moradores de comunidades invisibilizadas pela superação da pobreza. É formada pela Universidade Nova de Lisboa em Engenharia Ambiental e mestre em Administração Pública pela Universidade de Columbia, Nova Iorque. Em 2022 e 2023 foi eleita uma das 500 pessoas mais influentes da América Latina pela Bloomberg Linea.
Ygor Santos Melo é Arquiteto & Urbanista (UNESP) e mestrando em Habitat (USP), tem mais de 10 anos de sólida atuação com os temas de habitação, política urbana, mudanças climáticas e impacto social no Brasil, América Latina e Europa. Desenvolve projetos e metodologias que impactaram mais de 20.000 pessoas em pelo menos 70 favelas e comunidades urbanas e não-urbanas no Brasil. Em 2024, foi reconhecido como um dos Jóvens Líderes Transformando la Vivienda y el Hábitat pela Urban Housing Practitioners Hub (UHPH) e UN-Habitat.
Este artigo ficou em 1º lugar no Concurso de Artigos do Caos Planejado, realizado em fevereiro de 2025.
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