Privatização ferroviária: o fracasso do Reino Unido e o sucesso do Japão
Imagem: ShepherdMedia/Pixabay.

Privatização ferroviária: o fracasso do Reino Unido e o sucesso do Japão

Enquanto a privatização ferroviária aprimora a eficiência japonesa, a ideia de renacionalização vem ganhando espaço no Reino Unido.

11 de março de 2019

Recentemente o Financial Times decidiu abordar a polêmica questão dos serviços ferroviários privatizados do Reino Unido. Chamo de polêmica pois a opinião pública tem crescentemente favorecido a renacionalização, que já se tornou bandeira política da oposição ao atual governo.

Aparentemente a perspectiva de promover a competição, que supostamente elevaria a qualidade e reduziria os preços, acabou provocando justamente o efeito inverso e o sistema ferroviário do Reino Unido recorrentemente tem aparecido nas manchetes dos jornais britânicos.

Atrasos, superlotação, tarifas mais caras em comparação com as redes da França e da Alemanha, além da infraestrutura envelhecida e propensa a falhas são algumas das principais reclamações.

Considerando que o sistema metroferroviário de São Paulo dificilmente permanecerá estatal — se as promessas do atual governador João Doria forem cumpridas—, podemos partir da seguinte pergunta: se a privatização é uma escolha inegociável por parte do atual governo, então como nós passageiros poderemos garantir que não vamos enfrentar retrocessos durante as próximas décadas?

A análise do Financial Times mostra que a receita para o sucesso é muito mais difícil e tortuosa do que as perspectivas para a Linha 4-Amarela parecem sugerir: afinal, o pesadelo do Reino Unido começou em 1994 e ainda não terminou.

O segredo para encarar tal desafio está na compreensão do modelo ferroviário japonês, surgido com a privatização no final dos anos 1980, embora já existissem companhias ferroviárias privadas na época.

Ainda que o caso do Japão evidencie o triunfo da iniciativa privada, este não ocorre sozinho: um sistema robusto de regulação, competição indireta e uma dose sadia de especulação imobiliária são elementos indissociáveis, o que torna a replicação nada trivial.

Hironori Kato, professor de engenharia civil na Universidade de Tóquio, considera que o sucesso no ramo ferroviário depende de consciência social em relação às comunidades servidas pela malha. Kato não fala em consciência social a esmo pois Fumiaki Shiroishi, diretor da divisão ferroviária em Tokyu, que serve alguns dos subúrbios mais populares de Tóquio, também defende o papel importante do componente imobiliário.

Shiroishi aponta que os trilhos servem áreas residenciais relativamente atraentes e que a companhia se preocupa em garantir a fixação de uma população jovem, que considera tais bairros como bons lugares para morar. Falar em imóveis pode parecer estranho, principalmente considerando a cristalização da desigualdade social ao longo da malha de trilhos da Região Metropolitana de São Paulo, porém, faz todo sentido dentro do modelo de negócio praticado no Japão.

O Japão privatizou a rede ferroviária nacional de forma conjunta, apesar de manter uma separação em nível regional. Em Tóquio, a JR East, a maior empresa resultante das privatizações, ficou dona da infraestrutura (trilhos e estações) e também dos trens.

No Reino Unido, a infraestrutura é de propriedade estatal, que não se importa se o faturamento privado cresceu ou diminuiu. Lá os operadores privados também não podem se envolver em problemas decorrentes da infraestrutura, como falhas na sinalização, algo que seria absolutamente impensável no Japão.

No formato japonês, algumas operações permaneceram 100% de propriedade estatal, como o caso da JR Hokkaido, que atende regiões rurais e não é lucrativa. Há ainda mais um problema com o modelo britânico, apontado por Takeshi Omori, funcionário da JR East: franquias com duração de 10 anos não funcionam quando o investimento só se paga no longo prazo, pois quanto mais próximo do fim da concessão, menos há incentivo para investir. Omori diz que aí consiste a diferença entre ser o dono da própria infraestrutura ou o usuário de uma infraestrutura que está sendo emprestada.

Shinkansen
Com 2.764 km de trilhos, o Shinkansen, rede de trens de alta velocidade do Japão, cobre a maioria das cidades do país. (Imagem: AndyLeungHK/Pixabay)

Falar em empréstimo nos remete ao tipo de concessão que comumente vemos no Brasil, certo? Mais ou menos. É verdade que no caso paulistano da Linha 5–Lilás o governo adotou a chamada “concessão por outorga”. A CCR, ganhadora por meio da ViaMobilidade, estava disposta a pagar o “maior aluguel”, além das contrapartidas exigidas pelo governo estadual.

Por ter um prazo acima de 10 anos, ela tem a amortização do investimento em uma lógica não muito distante do raciocínio de Omori. O mesmo ocorre no caso do Shinkansen, a rede de trens de alta velocidade: um fundo governamental constrói e detém a propriedade da infraestrutura, repassando-a para as companhias da JR que então operam os trens em contratos de 30 anos.

No repasse, o poder público coleta e analisa informações de todas as ferrovias privadas do território japonês, fixando o teto do custo fixo com base numa margem de lucro e de custos que exigem padrões eficientes de gestão.

O poder público também colabora precificando pedágios em rodovias concorrentes para que sejam tão ou mais caros quanto as tarifas dos trens-bala, o que se soma ao custo de se ter um carro no Japão: vagas públicas de estacionamento grátis ao longo das vias, diferente do Brasil, não existem.

No Reino Unido, como explicou Dave Ashton, CEO de um site de venda de passagens à revista Wired, a profusão de diferentes formas de cobrança causa confusão, o que acaba levando muitos consumidores a optarem pelo tipo mais caro de bilhete, do tipo “qualquer horário, qualquer trem”, privilegiando a capacidade de evitar ser multado em detrimento do preço.

Por sua vez, o modelo japonês adota um sistema tarifário mais simples em comparação com o Reino Unido. Porém, como o estado fixa um teto, a tarifa é cobrada por distância e, nos horários de pico, os valores não se alteram em função da oferta e da demanda.

Ou seja, todos querem embarcar no trem das 8h pois, se custa o mesmo preço em qualquer momento do dia, para o passageiro não faz sentido chegar mais tarde sem poder economizar alguns ienes.

Uma diferença importante entre o sistema japonês e o britânico é a forma de concorrência. No Japão, os contratos com duração com mais de 10 anos possibilitam que haja investimento e, então, concorrência entre infraestruturas de empresas diferentes, com paralelismo entre rotas.

Por exemplo, há três rotas concorrentes entre Tóquio-Yokohama e entre Osaka-Kobe. No caso britânico não há paralelismo, e a concorrência ocorre apenas na operação de uma mesma infraestrutura. Esta abundância de infraestrutura no Japão ainda não supera a exploração imobiliária, fonte crucial de receita, em um formato onde as companhias JR procuram manter as proximidades das linhas lugares interessantes para se morar.

Na prática, cada linha atende um conjunto diferente de subúrbios, que competem entre si. Dentro da lógica de negócio das ferrovias, se um subúrbio passa a ser desinteressante devido à falta de investimentos numa linha, a população simplesmente começa a se mudar, o que é indesejável e tenta ser evitado pelas empresas.

No passado, a construção de lojas e apartamentos eram ativadores de demanda, mas o excesso de oferta levou à consolidação da localização como diferencial, se dando pela presença de uma estação.

Ainda, é preciso entender que, diferente das duas companhias que atuam na Região Metropolitana de São Paulo — a Companhia do Metropolitano de São Paulo e a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos —, a receita extra-tarifária tem uma grande participação na sustentabilidade financeira das ferrovias japoneses.

Shiroishi revelou que a receita da JR East está dividida em cerca de um terço na exploração do transporte de passageiros, um terço na exploração comercial (supermercados, lojas de conveniência e hotéis) e um terço na exploração imobiliária, apontando especificamente para o desenvolvimento ao redor da estação terminal em Shibuya.

Segundo os relatórios administrativos mais recentes quando da produção deste artigo, a receita operacional bruta da CPTM está dividida em 53,5% da tarifa, 43,9% de subsídios do governo estadual e apenas 2,60% provenientes de outras receitas (entre elas, cessão do uso para transporte de carga, exploração comercial por terceiros e venda de material inservível); na CMSP o desempenho das outras receitas (entre elas, publicidade e shopping centers operados por terceiros) é melhor, atingindo a marca de 13% em relação às receitas tarifárias.

Finalmente, a capacidade de cooperação entra em cena: o sistema de bilhetagem adota cartões que podem ser utilizados na rede do país inteiro, e há compartilhamento dos trilhos entre as empresas. Em Tóquio há trens suburbanos que entram diretamente nos trilhos do sistema de metrô, e um passageiro pode acabar passando pelos trilhos de cinco empresas diferentes numa única viagem.

A motivação, segundo o jornal, está na busca pelo aproveitamento do custo fixo dos trilhos de cada companhia. Pode parecer que o compartilhamento de rotas é confuso, mas há transparência para os passageiros das mais de trinta companhias diferentes, sendo duas ligadas ao governo metropolitano.

A matéria sugere que o Reino Unido mantenha algumas linhas estatais e, quando fizer a privatização de parcelas da malha, a faça linha a linha, escolhendo entre outorga de longo prazo ou venda completa dos ativos. A regulação das linhas privatizadas se daria por benchmarking: as linhas estatais contribuiriam para manter a idoneidade da iniciativa privada e o ente regulador ciente dos custos.

No Brasil, uma “solução japonesa” exigiria drásticas mudanças na legislação, de forma a permitir uma atuação múltipla, contemplando empreendimentos imobiliários, comerciais e hoteleiros, sem deixar de existir participação e regulação eficiente por parte do governo.

A inexistência de um governo metropolitano também significa que cada município tem seus processos de licenciamento e regulação do uso e ocupação do solo, embora o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDUI) em São Paulo possa elevar a sinergia existente entre os governos municipais e o governo estadual. No entanto, no caso de São Paulo, com o marco regulatório atual e o tipo de postura que tem sido observada historicamente, é difícil acreditar em resultados extraordinários com a privatização.

Artigo publicado originalmente em 28 de janeiro de 2019 na publicação Trens Metropolitanos do COMMU, Coletivo Metropolitano de Mobilidade Urbana.

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  • Outro grande texto!!!!

    Gostaria de saber se existe a intenção de analisar os atuais sistemas de transporte público sobre trilhos do Brasil e citar o que seria possível fazer para que haja uma melhora nesses sistemas, ainda que seja apenas citando alguns norteadores.

    Atualmente estamos, em várias cidades, em meio a uma discussão sobre concessão dos sistemas de transporte ferroviário. Algumas linhas de São Paulo foram concedidas recentemente, em Brasília também já foi lançado edital para que as empresas interessadas façam estudos de viabilidade, além de outras cidades com linhas de Metrô e VLT operadas pela CBTU e Trensurb, onde o Governo Federal já os incluiu no programa de privatizações/ concessões.

    Já existe um forte movimento de sindicalistas a movimentos políticos contrários ao desenvolvimento econômico, que são contra a qualquer a qualquer forma de concessão.

    Por outro já sabemos que a simples concessão pode não trazer os resultados que queremos, existem contratos bons e ruins como mostra o texto.

    A questão é, quais seriam os critérios que poderíamos ter para saber/analisar e exigir uma boa concessão?
    Este texto já traz algumas pistas, como o tempo de concessão e a permissão para explorar o mercado imobiliário dos móveis lindeiros às linhas.

  • Anthony, concordo bastante com o que você disse. Mas permanece o grande desafio: como vamos mudar esse cenário? Como iniciar o processo de mudança das métricas? É muito angustiante não ver espaço para fazer isso.

  • Na realidade brasileira, dados os entraves regulatórios que impedem o modelo japonês (desde os planos diretores às infelizes obrigatoriedades constitucionais que matam qualquer iniciativa de mercado nos transportes), tem como/vale à pena fazer algum modelo de transporte rodoviário de médio/longo percurso viável?

    Modelos como o Brightline da Flórida me parecem viáveis nos eixos São Carlos – Santos e de Sorocaba ao Vale do Paraíba. Mas e fora disso, devemos esquecer de vez o transporte sobre trilhos?

    • O transporte coletivo rodoviário funciona relativamente bem, mas falta uma série de medidas para sairmos do ciclo vicioso de queda de passageiros… como regular a presença dos automóveis nas vias e redesenhar concessões operacionais, redefinindo métricas, rotas, tipos de veículo e formas de cobrança. Também gostaria de ver a regularização do transporte alternativo, como uma alternativa adicional ao transporte individual.

      Quanto ao transporte sobre trilhos, sabemos que no Brasil ele depende fortemente do governo federal para obtenção de verbas. Isso significa que prefeitos fazem uma espécie de lobby para conseguir verbas da União. O ideal ser a descentralização destes recursos para que o município pudesse ser mais financeiramente independente e responsável. Na ausência disso, gostaria de ver a distribuição de recursos da União atrelados a projetos ou medidas municipais mais específicas: para um investimento ferroviário de alto porte, por exemplo, seria interessante exigir a mudança de certas legislações municipais de forma a viabilizar a obra na rede urbana.

  • O governo nunca poderá se eximir de estar presente com responsabilidades definidas quando em qualquer setor dos transportes públicos houver parceria com a iniciativa privada
    Principalmente no caso brasileiro onde esse transporte enquanto ferroviário foi destruído tendo que ser implantado desde o início trazendo de forma clara grande dificuldade de amortização de valores aplicados!
    Ressalto ainda antiga frase disposta em todos os ônibus de nossa cidade
    “Transporte é um direito do cidadão é um dever do Estado”!!!!
    Nosso caso, como de toda América Ibérica, mostra equívocos de uma cultura da tentativa do lucro em todos os setores apesar dos prejuízos que trás para o desenvolvimento da nação com perdas financeiras, neste caso desse descaso, da grande dificuldade de certeza produtiva do trabalhador. Bom lembrar que hoje em SP não existem distâncias a vencer e sim o tempo a conquistar…

    • Quanto mais concorrencia melhor para todos. O Brasileiro precisa aprender, que o estado não faz nada com dinheiro de politico. Pelo contrario tudo que politico faz é com dinheiro do povo.

      Falar bonito não resolve o problema. O monopolio estatal ou regulação do estado que IMPEDE QUE OUTRAS EMPRESAS OFEREÇÃO O MESMO SERVIÇO OU PRODUTO, isso é o problema, e grave…

      Precisamos aprender que capitalismo, privatização, e demais palavras, se tratam primeiro de LIBERDADE, segundo de CONCORRENCIA, terceiro de MENOR PREÇO, quarto MAIS QUALIDADE. E como isso é possivel ? Quando podemos escolher, não vamos desejar o pior do pior, passamos a nos adaptarmos a desejar algo melhor, algo que dure, que seja melhor em todos os sentido. Começamos a pesar nossas escolhas.. e mesmo que pessoas má intencionadas queiram nós enganar, podemos cair em erros, 1 vez ou outra. Mas depois tal marca ou produto caí e desaparece…..

      Ou seja, quando sairmos do monopolio estatal, para o livre comercio… aprendemos a da valor… pois eramos acostumados a ter um estado escolhendo tudo para nós, saúde, alimentação, transporte, e etc.

      Ai o estado oferece apenas uma opção para tudo.. um monopolio, um tipo de sistema só… vc não tem escolha.. não existe melhor ou pior, é tudo ruim porigual… e por falta de conhecimento ou medo as pessoas não enetndem que se tivessemos mais escolhas, menos regulação do estado, seriam melhor…. não entendem que teriamos concorrencia e que CADA UM PRIVADO POR CONTA DE LUCRO, prove melhor serviço e produto do que o estado.

      Porque se eles não fizerem direito, e melhor, quem da o lucro simplismente vai da o lucro para outro melhor, outro mais certo…. PORQUE NINGUÈM ESTA O OBRIGANDO E NEM PODE O OBRIGAR A FICAR E DA LUCRO PARA ALGO RUIM…

      Pensem nisso…. O estado só atrapalha… quanto menos estado melhor… A ESCOLA AUSTRIACA DE ECONOMIA tem plena razão.

    • Caro Cyro,

      O artigo busca analisar justamente isso, evidências práticas de casos que deram errado — assim como que deram certo. A partir disso, me parece que usar o termo “privatização” de forma genérica, sem olhar os detalhes de como ela é feita, não é o suficiente para julgar se teremos resultados positivos ou negativos.

      Abs
      Anthony