Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Comércio, extorsão e trabalho escravo enriqueceram Roma ao ponto de se tornar a maior metrópole do mundo antigo, com cerca de 1 milhão de pessoas.
6 de maio de 2019Metrópole é uma palavra derivada do grego metropolis, união de meter (mãe ou ventre) e polis (cidade). Assim, a metrópole é a cidade mãe, a mais importante dentro de um contexto em que várias cidades estão interligadas, de forma que uma depende da outra para exercer as suas atividades de forma plena. Na maioria dos casos, temos conurbações entre vários aglomerados urbanos nas metrópoles — a exemplo da Roma Antiga.
Uma metrópole é então uma cidade que acaba servindo como um ímã para toda a sua região vizinha, tornando-se o centro comercial e financeiro local. Marcelo Lopes de Souza, professor do Departamento de Geografia na UFRJ, em seu livro “ABC do desenvolvimento urbano”, reforça esse entendimento, destacando que a metrópole não pode ser compreendida de forma isolada, sem associá-la a uma região metropolitana, em que se inclui a cidade ímã e as demais sob sua influência.
Apesar de aparentar ser algo novo, resultado da industrialização e expansão das cidades ao longo dos últimos séculos, na idade antiga nós tivemos alguns exemplos de aglomerados urbanos semelhantes às metrópoles modernas, sendo a mais famosa e importante delas a cidade da Roma Antiga, capital do Império Romano.
O império romano foi o mais poderoso império do mundo antigo. Chegou a controlar 21% da população mundial e desenvolveu arte, ciências e política de forma nunca antes vista, deixando um legado que perpetua até os nossos tempos. Sua capital, Roma, também conhecida como “cidade eterna”, sintetizou todo o esplendor do império em obras complexas e muito avançadas para o seu tempo, como o Coliseu e o Panteão Romano.
O comércio, a extorsão e o trabalho escravo enriqueceram a Roma Antiga de tal forma que ela veio a se tornar a maior metrópole do mundo antigo, com sua população atingindo uma marca que variava entre 700 mil a 1 milhão de pessoas, maior marca de uma cidade no mundo ocidental até então, conforme destaca Benévolo em “História das cidades”.
A cidade era tão grande que as construções se perdiam ao longo do horizonte. Élio Aristides, intelectual romano, afirmou que a cidade cobria o horizonte como neve, marca do mármore que revestia boa parte das construções no período de ouro da cidade. Catálogos regionais do final do século III apontam a existência de pelo menos 1.790 domus e 44.300 insulares, habitações tipicamente romanas, conforme destaca Benévolo.
Todavia, apesar da grande marca de edificações residenciais que ajuda a compreender a dimensão da cidade, a Roma Antiga não se sobressaiu por conta delas, mas sim por seus grandes monumentos e obras de engenharia.
As estradas romanas, conhecidas por sua eficiência e utilidade para o império, são as primeiras obras a serem destacadas. Em geral, eram feitas de pedra e apresentam declividade para escoamento das águas pluviais. Com largura variando de quatro a seis metros, permitiam a passagem de carruagens e pedestres.
Para vencer montanhas, vales e rios, os romanos eram capazes de criar rapidamente e com perfeição pontes para ligar um ponto ao outro. Entre as estratégias adotadas, temos os arcos, que além de tornar a estrutura mais leve e econômica, aumentavam a sua estabilidade.
Outra edificação muito importante para entender a cidade de Roma é o Fórum Romano. Segundo Mumford, em “A cidade na história”, esse espaço nasceu como um local simbólico para celebrar a união entre os etruscos e outras tribos estrangeiras. O espaço era destinado a praticas cíveis, políticas, recreativas e ao comércio.
Todavia, não se deve imaginar o Fórum como um mero espaço aberto, mas como uma estrutura complexa, em que estavam presentes outras edificações, como templos e edificações públicas. Ou seja, “o fórum romano era, na realidade, uma combinação de ágora e acrópole”.
Outras edificações, como o Panteão Romano e o Coliseu, merecem destaque dentro do estudo da arquitetura e urbanismo, especialmente por introduzir na engenharia conceitos inovadores e técnicas avançadas para a sua época, aproveitando algumas ideias, como uso de arcos, da construção do que é, para muitos, a maior obra da cidade de Roma na antiguidade: seu sistema de distribuição de água e coleta de esgoto.
Apesar da magnitude de obras como o Coliseu e Panteão, que se tornaram obras ícones do poderio romano para todo a eternidade, não há obra mais importante para estudo do urbanismo e das cidades que os aquedutos romanos e as fossas públicas. Elas marcam um avanço histórico, único na história das cidades, em que foram realizados investimentos para um serviço coletivo não relacionado diretamente à religião ou recreação, mas sim voltado exclusivamente às necessidades básicas da população.
Os aquedutos romanos serviam para abastecer a cidade da Roma Antiga com água limpa. Elas captavam águas em fontes a quilômetros de distância da cidade, garantindo assim o abastecimento capaz de matar a sede da população, de animais usados no transporte e até mesmo para abastecer as casas de banhos públicos.
Os aquedutos contavam apenas com a força da gravidade para levar a água até a cidade de Roma, o que exigia grande precisão no cálculo de declividade do canal de transporte da água, que precisava manter-se eficiente ainda que em situações adversas, como ao atravessar rios, montanhas, morros, etc. Para isso, os engenheiros romanos construíam pontes e túneis, garantindo assim o abastecimento romano.
A Cloaca Máxima, outra obra fundamental para entender a grandeza da cidade de Roma, consiste num sistema de esgoto primitivo, em que os dejetos eram recolhidos e direcionados para o Rio Tibre. Munford destaca que a Cloaca começou a ser construída antes mesmo do crescimento exponencial da cidade romana, o que leva a crer que, de certo modo, eles anteciparam a capacidade de crescimento da cidade.
Por fim, vale destacar a importância dos banhos públicos, que tinham como propósito o lazer e a higienização da população. Eles eram servidos de água dos aquedutos e possuíam sistema de aquecimento para que suas atividades não parassem durante o inverno. Algumas famílias abastadas ainda possuíam piscinas privadas.
Os dejetos produzidos pelo ser humano continuam a ser um problema nos dias atuais. Além disso, devido a escala populacional que alcançamos, a solução da Cloaca Máxima não é mais indicada, apesar de, infelizmente, ser utilizada em larga escala no Brasil — o lançamento de dejetos sem tratamento diretamente nos rios e mares. A falta de um saneamento adequado leva a vários problemas, como queda de qualidade de vida e proliferação de doenças, poluição dos rios e perda de toda a sua biodiversidade.
Por outro lado, a água é um bem que ainda não chegou à casa de todos os brasileiros. Segundo dados, cerca de 55% da população brasileira ainda não tem acesso à água potável, que também é a causa de diversas doenças. Em um primeiro momento, pode não parecer, mas ambas as soluções estão interligadas.
É importante que, ao mesmo tempo que se dê uma destinação adequada ao esgoto, mantenha-se os corpos d’água limpos. Entre os exemplos de cidade que conseguiram despoluir seus rios, temos Seul e Londres. Outros serviços, como coleta de lixo e eletricidade, tão importantes para exercer a vida moderna, também merecem atenção especial.
Por fim, vale a reflexão: qual é o papel do urbanismo enquanto prática? Ou como aplicá-lo de forma mais eficiente? Roma privilegiava sua atuação construindo monumentos públicos e obras de infraestrutura. Para o espaço privado, pouco ou quase nada de regulação.
Esse entendimento, segundo Alain Bertaud, um dos urbanistas mais influentes da atualidade, é o mais correto. Em entrevista ao Caos Planejado, Bertaud afirma que as estruturas mais complexas da natureza, como enxames de estorninhos e barreiras de corais são criadas de forma espontânea. As cidades, portanto, devem reduzir o design top-down ao máximo.
Bertaud explica melhor sobre essa questão em seu mais recente livro, “Order without design”. Outros autores, como Edward. L. Glaeser e Mathieu Hélie, também têm ideias que vão nesse sentido: o urbanismo não deveria se ater a controlar o solo privado da forma que o controla atualmente, pois ele não consegue analisar e obter todas as variáveis sobre aquele terreno, e, por isso, não consegue planejá-lo de forma eficiente. Antes de toda essa reflexão, de alguma forma, os engenheiros romanos parecem ter entendido isso e conseguiram focar suas ações em sistemas eficientes.
No Brasil, parece acontecer o contrário: ao passo que as espaços públicos se deterioraram e os serviços básicos se mantém estagnados, a regulação sobre o espaço privado aumenta. Implementação de serviços como coleta de água, esgoto e coleta de lixo são muito complexos, o que exige grande capacidade de coordenação para executá-lo de forma eficiente, atendendo a todas as exigências atuais. Se mudarmos o foco do nosso urbanismo, talvez possamos construir cidades melhores.
Dessa maneira, assim como os engenheiros romanos impressionaram o mundo por sua destreza e preocupação na construção de um sistema de distribuição de água e coleta de esgoto, ainda que rudimentar, mas sofisticado para a época, é importante que no Brasil seja finalmente dado um passo rumo à universalização do saneamento e água encanada para a população, obras não tão vistosas como grandes monumentos, mas muito importantes para a vitalidade urbana, qualidade de vida e preservação do meio ambiente.
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