Favelas e comunidades urbanas: um novo nome, um novo “popular”
Foto: Hugo Martins/Flickr

Favelas e comunidades urbanas: um novo nome, um novo “popular”

A mudança recente na forma como o IBGE chama as favelas reflete as transformações ao longo do tempo nesses lugares e vai ao encontro de investigações acadêmicas que apontam o fortalecimento do empreendedorismo.

20 de março de 2025

Em uma entrevista dada em 2020, Celso Athayde, empresário e fundador da CUFA (Central Única das Favelas), afirmou que “automaticamente quem mora em favela é um empreendedor natural”, já que “ou ele empreende ou ele morre”. Impactante, a fala revela uma visão recorrente sobre os moradores de favelas e suas possibilidades de vida. 

Apresento adiante achados parciais da minha pesquisa de doutorado junto à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP). Ainda em andamento, o trabalho é intitulado “Da ‘inclusão precária’ à inclusão via mercado: territórios populares e empreendedorismo social em São Paulo”. O objetivo da investigação é entender como a atuação de empreendimentos sociais transforma favelas e comunidades urbanas. O recorte de resultados escolhido para este artigo visa tratar das modificações observadas em um conjunto de favelas da Zona Sul paulistana e sugere um cenário de mudança no perfil popular de quem mora nesse tipo de assentamento Brasil afora. Defendo que tal transformação é realçada pela recente alteração na adoção de termos técnicos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Como veremos, começa a haver um novo entendimento por parte do órgão público acerca deste tipo de moradia, que, segundo dados do Censo de 2022, abriga 16,4 milhões de pessoas – 8,1% do total da população brasileira.

Em 2024, o instituto passou a chamar as favelas brasileiras de “favelas e comunidades urbanas”. A denominação foi mudando ao longo dos anos. Nos censos de 1950 e 1960, o instituto ainda usava o termo “favela”. Em 1970, o nome mudou para “aglomerados urbanos excepcionais”. Em 1980, passou-se a “setores especiais de aglomerados urbanos” e, em 1991, a “aglomerados subnormais (favelas e similares)” – mesmo termo adotado no Censo de 2000. Finalmente, em 2010 o nome da vez foi “aglomerados subnormais”.

Na redação dos critérios de identificação e mapeamento das favelas e comunidades urbanas, foi acrescido entre 2010 e 2022 o termo “territórios populares”, que traduz um conceito cada vez mais utilizado na academia. Mas não façamos confusão: o termo, embora ajude a qualificar as favelas e comunidades urbanas, não é um sinônimo de favela.

O território é um espaço alvo de disputas pelo seu controle. A luta entre atores sociais pelo poder faz do espaço um território. Sendo essa uma visão possível para qualquer espaço urbano, as favelas constituem-se como territórios específicos por serem populares, isto é, por abrigarem uma população de trabalhadores de baixa renda, a quem em meados do século 20 não chegava coleta de esgoto e de lixo, pavimentação de ruas, além de escolas e postos de saúde. Nesse contexto, os trabalhadores ocuparam espaços em geral de propriedade alheia, marcando disputas sobre a propriedade da terra e sobre a efetivação de direitos – como o direito à moradia digna, ao saneamento básico e, em última análise, à cidade.

Os novos termos não entraram em cena ao acaso. A mudança na forma como o IBGE chama as favelas reflete as alterações ao longo do tempo nesses lugares e, principalmente, nos seus moradores e na maneira como eles próprios constroem e chamam os territórios em que vivem.

O povo que mora em favelas e comunidades urbanas se transformou. O “popular” dos anos 1970 não é o “popular” dos anos 2020. Ainda que de modo incompleto e longe do ideal, os trabalhadores foram contemplados com serviços de regularização fundiária e de urbanização e com equipamentos como creches e Unidades Básicas de Saúde (UBS). Atores ligados ao crime, a igrejas e ao terceiro setor – que representa as organizações não governamentais (ONG) – passaram a atuar com maior relevância.

Leia mais: Serviços e segurança pública: quanto um programa de urbanização de favelas pode entregar?

Minha pesquisa de doutorado revela que, na esteira dessas transformações, o empreendedorismo tradicional e o social – que abrange os negócios de impacto e as ONGs – ganharam adesão e influenciaram o mundo do trabalho e a forma como a população se organiza em comunidade. Os empreendimentos geram valor – em geral econômico, mas em muitas situações, social – de modo a criarem oportunidades de consumo, de ofertas de empregos, de acréscimo de renda, de preservação do meio ambiente, de provisão de moradia e de serviços de educação e saúde.

A forma como se encara o empreendedorismo – dentro e fora das favelas – também se alterou. Um levantamento de abrangência nacional feito desde 2012 pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) mostrou que, em 2022, 60% dos entrevistados tinham o sonho de se tornarem empreendedores – o maior percentual da série.

Nessa linha, as favelas se tornam alvos de investidores, aceleradoras e empresas, ou, em outras palavras, tornam-se o que venho chamando de territórios do mercado. Um exemplo é o Jardim Ibirapuera, bairro de mais de 40 mil habitantes da Zona Sul de São Paulo (ver mapa abaixo) que concentra seis favelas, a cuja população o negócio de impacto Vivenda oferece serviços de melhorias habitacionais desde 2014. A lógica do empreendimento – que já operou vendendo kits de reforma a famílias da região e que hoje capta doações de grandes empresas e as converte em obras executadas com mão de obra local – é explorar um nicho de mercado de baixa renda e injetar recursos na economia dos assentamentos onde atua. Esse modus operandi difere dos tradicionais mutirões geridos por movimentos sociais e assistidos por assessorias técnicas populares, comuns nos anos 1990. As favelas ainda observam práticas de autoconstrução e de autogestão, mas o cenário, que hoje inclui a Vivenda e outros empreendimentos, tornou-se mais complexo com a chegada de novos atores sociais. 

Jardim Ibirapuera na Região Metropolitana de São Paulo. Fontes: Centro de Estudos da Metrópole, Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, DAEE, Sabesp, prefeituras dos municípios da Região Metropolitana de São Paulo. Mapa: Guilherme Formicki

As ONGs, outro braço do empreendedorismo social, também têm marcado presença nesse espectro. No Jardim Ibirapuera, o Bloco do Beco e o Projeto Viela ajudaram na seleção de beneficiários das melhorias habitacionais gerenciadas pela Vivenda. O empreendimento também contou com o auxílio de assistentes sociais do Serviço de Assistência Social à Família e Proteção Social Básica no Domicílio (SASF) São Luiz II, que fizeram uma busca ativa para a inclusão de mais famílias beneficiárias. As ONGs e o SASF ajudaram a expandir o circuito de melhorias e de consumidores do serviço e contribuíram para a alavancagem da economia local.

As ONGs – reconhecidas pela legislação federal como Organizações da Sociedade Civil (OSC) – têm conquistado espaço em favelas com ações diversas. O Bloco do Beco, por exemplo, coordena esforços de coleta de dados sobre o Jardim Ibirapuera e os converte em intervenções de interesse público. Entre 2019 e 2020, a ONG entrevistou mais de 400 moradores do bairro em conjunto com agentes comunitários de saúde para entender as demandas da população e como a organização deveria responder. Desde então, passou a gerir o Ponto de Cultura Bloco do Beco, espaço comunitário com mais de 50 anos de história, e criou o IbiraLab, espaço de audiovisual e memória que oferece cursos e palestras de fotografia e disciplinas relacionadas. Além disso, durante a pandemia de COVID-19, o Bloco recebeu doações e as distribuiu entre igrejas e lideranças do Jardim Ibirapuera para que os insumos depois chegassem na ponta – isto é, nos moradores. Um dos objetivos era fortalecer as lideranças locais atuantes no intermédio dos esforços.

O Bloco do Beco, a propósito, se tornou uma liderança no bairro. “o Bloco em si já é uma… o Bloco é uma liderança, sim”, contou o coordenador da ONG em uma entrevista no âmbito da pesquisa.

Viela no Jardim Ibirapuera. Foto: Guilherme Formicki

Se, como expresso na abertura deste artigo, Celso Athayde destaca a necessidade de se empreender entre moradores de favelas, outros empreendedores sublinham que esses lugares são zonas de potência. Edu Lyra, que comanda a ONG Gerando Falcões, já deu várias declarações em que reconhece o capital humano das favelas brasileiras e em que torna público o desejo de vê-las repletas de dignidade.

Leia mais: Urbanização de favelas em São Paulo e modelos de financiamento

Em linha com a mudança na adoção dos termos técnicos do IBGE, os novos e velhos atores que moram e que lidam com as favelas brasileiras têm reconhecido as transformações nessas áreas. Contudo, o novo perfil popular, que abarca uma maior adesão ao empreendedorismo e uma penetração considerável do mercado e de organizações do terceiro setor, não abandonou todas as carências do passado. As vulnerabilidades ainda são muitas. Assim como as potencialidades, cuja efetivação pode passar pelo empreendedorismo e por outros caminhos – dentre os quais, a execução de políticas públicas e a consecução de direitos. De uma forma ou de outra, é preciso que as transformações, desde que em prol do bem-estar geral, venham para ficar.

Guilherme Formicki é doutorando em Planejamento Urbano e Regional na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Arquiteto e urbanista formado na FAUUSP, cursou o mestrado em Planejamento Urbano pela Universidade de Columbia (EUA). Lá, ganhou o prêmio Charles Abrams pela dissertação com o maior comprometimento com justiça social. Guilherme trabalhou na Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo entre 2014 e 2016, com atuação na urbanização de sete favelas das zonas Sul e Oeste da cidade.

Este artigo ficou em 2º lugar no Concurso de Artigos do Caos Planejado, realizado em fevereiro de 2025.

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