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Quando nossas intuições básicas e crenças populares sobre o mercado imobiliário estão equivocadas, não é possível encontrar soluções concretas.
23 de outubro de 2025A frustração com o alto custo da moradia é um sentimento quase universal. Seja o aluguel que consome uma parte cada vez maior do salário ou o sonho da casa própria que parece cada vez mais distante, a crise imobiliária afeta a todos nós. Instintivamente, formamos opiniões fortes sobre por que os preços são tão altos e quem são os culpados.
No entanto, uma onda de pesquisas econômicas recentes revela uma verdade desconfortável: nossas intuições mais básicas estão, na maioria das vezes, equivocadas. Este artigo explora o perigoso abismo entre a “economia popular” – nossas crenças intuitivas – e os princípios econômicos estabelecidos, e como esse conflito alimenta a própria crise que tentamos desesperadamente resolver.
A partir do estudo “The Folk Economics of Housing”, de Christopher Elmendorf, Clayton Nall e Stan Oklobdzija (2025), vamos desvendar quatro surpresas sobre o mercado imobiliário que desafiam as crenças populares. Entender esses equívocos não é apenas um exercício acadêmico; é o primeiro passo para encontrar soluções que realmente funcionem.
A sabedoria popular pinta os proprietários de imóveis como um bloco monolítico, guardando zelosamente a valorização de suas propriedades. Os dados, no entanto, contam uma história muito mais complexa e surpreendente. A primeira peça do quebra-cabeça que desafia nossa intuição é que a maioria dos proprietários, na verdade, prefere preços de imóveis e aluguéis mais baixos.
De acordo com o estudo de Elmendorf, Nall e Oklobdzija (2025), mais de 55% dos proprietários de imóveis preferem preços mais baixos, um número que salta para 85% entre os inquilinos. Esse resultado desafia diretamente a “hipótese do proprietário-eleitor” (homevoter hypothesis), que pressupõe que os proprietários sempre apoiarão políticas que inflem o valor de suas propriedades. A razão para essa preferência não é totalmente clara, mas sugere que preocupações com o custo de vida para si mesmos, para seus filhos e para a vitalidade de sua comunidade podem superar o simples desejo de maximizar o valor do patrimônio.
As pessoas geralmente entendem os conceitos básicos de oferta e demanda, exceto, curiosamente, quando se trata de moradia. Em pesquisas, o público demonstra uma lógica econômica sólida para a maioria dos mercados, mas essa lógica se desfaz completamente quando o assunto é o mercado imobiliário.
Os dados ilustram perfeitamente essa anomalia:
O que explica essa falha de raciocínio? A pesquisa sugere que, para a maioria das pessoas, a relação entre oferta e preço de imóveis não é uma crença equivocada, mas sim uma “não-atitude” – uma opinião formada na hora por quem não tem uma convicção firme. Como o estoque de moradias muda lentamente, as pessoas não têm experiências diretas que formem sua intuição. Esse vácuo cognitivo é então preenchido não por lógica, mas por algo mais primal: a busca por culpados.
Esse vácuo cognitivo sobre a dinâmica de oferta e demanda leva diretamente a uma consequência perigosa: a culpa pelo alto custo da moradia é frequentemente atribuída aos atores errados. Quando questionados sobre quem são os responsáveis pelos altos preços, os entrevistados são quase unânimes: a culpa é dos incorporadores e dos proprietários de imóveis para aluguel.
A ironia aqui é profunda. Incorporadores e proprietários são, na verdade, os dois grupos mais responsáveis por aumentar a oferta de moradia. Ao construir novas unidades e disponibilizá-las no mercado, eles são o principal mecanismo que, em um mercado funcional, ajuda a manter os aluguéis sob controle. Culpar quem constrói é como culpar os agricultores pela fome e, em seguida, propor como solução o tabelamento do preço do pão e a proibição de novos tratores.
As consequências desse erro de atribuição são graves e generalizadas, como aponta uma análise do estudo:
“Esse mal-entendido tem consequências generalizadas. Ele transforma construtores em vilões e alimenta políticas como tetos de aluguel e proibições a investidores, em vez de medidas pró-oferta que realmente funcionariam.”
O resultado inevitável e desastroso de uma “não-atitude” preenchida pela culpa equivocada é que as soluções preferidas pelo público são, muitas vezes, as mais contraproducentes. As políticas que gozam de maior apoio popular para combater a crise imobiliária são frequentemente as que mais a agravam.
O controle de aluguéis é um exemplo clássico. Dados de pesquisa mostram que mais de 85% do público apoia o controle de aluguéis. No entanto, essa política é quase universalmente criticada por economistas. Em uma pesquisa recente, apenas 2% dos economistas concordaram que os tetos de aluguel seriam benéficos, enquanto 74% discordaram.
Enquanto isso, as políticas que os especialistas concordam que realmente ajudariam — como permitir a construção de mais moradias através de mudanças no zoneamento ou reduzir taxas de desenvolvimento — são as menos populares e percebidas como as menos eficazes pelo público. Essa desconexão entre a opinião pública e a evidência econômica é um dos maiores obstáculos para a resolução da crise.
A crise imobiliária é complexa, mas não é insolúvel. O maior obstáculo pode não ser a falta de soluções, mas sim a natureza instável de nossas crenças. A pesquisa revela que, para a maioria, as opiniões sobre a economia da habitação não são crenças firmes, mas “não-atitudes” – um vácuo cognitivo. Esse vácuo nos torna vulneráveis a narrativas simplistas que culpam os atores errados, nos levando a defender políticas que, ironicamente, exacerbam a escassez de moradia.
Esse padrão não é exclusivo dos Estados Unidos. Observando o debate em Nova York, fica claro como o instinto político e a pressão popular frequentemente reforçam essas mesmas crenças — inclusive entre candidatos a prefeito que defendem o controle de aluguéis como solução central para a crise. É um retrato em tempo real da economia popular descrita por Elmendorf, Nall e Oklobdzija.
Isso nos deixa com uma reflexão final e crucial. Se nossos instintos sobre moradia estão tão equivocados, que outras crenças profundamente arraigadas deveríamos questionar para resolver nossos maiores problemas?
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