Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Quase um terço das pessoas em Déli vive em colônias ilegais, com péssimo abastecimento de água, linhas de esgoto, eletricidade e estradas.
24 de setembro de 2018Anos atrás, trabalhei para uma revista em Déli, Índia. Eu queria morar perto do escritório da revista, mas o aluguel era muito alto. Em uma área de baixa renda nas proximidades, aluguei um quarto sujo que minha namorada chamava de “O Buraco Negro”.
Em prédios do outro lado da rua, os aluguéis eram muito mais altos. Isso não fazia sentido. Levei anos para perceber que estava vivendo em uma “colônia ilegal”. Aproximadamente um terço das pessoas em Déli moram em colônias ilegais.
Quase um terço das pessoas em Déli vive em colônias ilegais, onde não possuem títulos de seguro de propriedade. Colônias ilegais violam as regulamentações de zoneamento e os planos diretores. Conexões de água, linhas de esgoto, eletricidade e estradas não funcionam muito bem, porque as colônias ilegais nem supostamente existem.
E algumas delas são mais populosas que muitas cidades americanas.Os aluguéis são baixos, mas estas propriedades são caras porque os proprietários esperam que o governo as legalize. É difícil reconstruir esses edifícios dilapidados porque a ameaça de despejo está sempre presente.
Centenas de milhares de pessoas que migram para Déli, Índia, todos os anos se instalam em tais colônias porque a moradia formal é muito cara. A terra para desenvolvimento é escassa e o cumprimento dos códigos de construção é um luxo que eles não podem pagar.
A terra não é escassa em Déli, como aprendi um dia, quando um amigo dirigiu comigo pela cidade. Há terra suficiente para todos morarem em uma mansão. A cidade da Índia tem quase 20 mil parques e jardins. Grandes extensões de terra permanecem ociosas ou subutilizadas, seja porque o governo a possui, seja porque os títulos de propriedade são fracos.
Políticos e burocratas experientes moram em mansões com vastos gramados bem cuidados no centro da cidade. Alguns desses eminentes políticos cultivam em terras urbanas valiosas, enquanto as empresas e as famílias se mudam para as cidades periféricas ou satélites, onde os preços dos imóveis são mais baixos.
Portanto, o trajeto médio é longo, as estradas são congestionadas demais e Déli é uma das cidades mais poluídas do mundo.
Em Déli, a relação entre a área construída e o terreno é geralmente 2. Em Los Angeles, pode chegar a 13 e em Singapura, pode chegar a 25. A regulamentação de zoneamento causa muitos danos. Mas é difícil para os americanos imaginarem o custo do zoneamento nas cidades indianas.
Déli é uma das cidades mais populosas do mundo e há grande demanda por espaço físico. Mas os incorporadores imobiliários não estão autorizados a construir grandes edifícios. Em Déli, para prédios de apartamentos, o índice de aproveitamento (IA) é geralmente 2. IA ou CA (coeficiente de aproveitamento), conceitos de planejamento urbano, são a razão entre o espaço físico construído e a área do terreno.
Isto significa, em Déli, que os incorporadores não estão autorizados a construir mais de 180 m² de área em um terreno de 90 m². Se um edifício ocupasse todo o terreno, este seria um edifício de dois andares.
Para entender o dano que isso inflige na segunda cidade mais populosa do mundo, lembre-se que, no centro de Manhattan, o IA pode subir para 15. Em Los Angeles, pode chegar a 13 e, em Chicago, até 12.
No centro de Hong Kong, o índice de aproveitamento mais alto é 12, no Bahrein é 17, e em Singapura pode chegar a 25. Não é de se surpreender que o espaço de escritórios no centro de Déli esteja entre os mais caros do mundo. É impossível reconstruir lucrativamente esses prédios em ruínas no centro de Déli porque eles estão sob controle de aluguel.
Déli não é, de forma alguma, uma exceção. Há tragédias de planejamento urbano muito piores entre as cidades indianas. O IA é geralmente entre 1 e 2 na maioria das cidades indianas, embora algumas dessas cidades sejam mais populosas do que a maioria dos países.
Eu nunca morei em Mumbai, onde uma pessoa consome, em média, menos espaço do que um prisioneiro americano. Mumbai é a cidade mais próspera da Índia, mas, em 2009, o consumo médio de espaço em Mumbai era de apenas 4,5 m². Há casos de 10–12 pessoas vivendo em um quarto minúsculo. Mais da metade das famílias tem apenas um quarto.
Já em 1978, um projeto do Departamento de Justiça aceitou que as prisões nos Estados Unidos deveriam oferecer quartos individuais de pelo menos 80 pés quadrados (aproximadamente 7,4 m²) por pessoa.
Todos os dias, cerca de 9 pessoas morrem enquanto viajam nos trens superlotados de Mumbai. Muitos deles teriam sobrevivido se Mumbai tivesse prédios maiores e menos pessoas tivessem que se deslocar até a cidade.
Milhões de imigrantes em Mumbai consideram este um preço que vale a pena pagar. Eles vivem em condições miseráveis, arriscam suas vidas e se espremem em espaços congestionados porque migrar para Mumbai é a melhor opção para se tornarem muito mais produtivos da noite para o dia.
Os salários indianos são extraordinariamente baixos para os padrões globais. É possível ganhar incomparavelmente mais migrando para o primeiro mundo. Mas indianos pouco qualificados acham isso quase impossível de se fazer.
É muito mais fácil migrar para Mumbai, onde a renda per capita é quase o dobro do restante da Índia. Mumbai oferece melhores padrões de vida, embora em muitos aspectos os prisioneiros americanos estejam em melhor situação. Mumbai tenta evitar que tais migrantes entrem sem impor restrições. A regulamentação da altura de edifícios não tem exatamente o mesmo efeito, mas está próxima disto.
Quase metade das pessoas em Mumbai vive em favelas, embora não sejam pobres pelos padrões indianos. Em prédios para locação, os aluguéis poderiam ser de até 1 milésimo do cobrado pelo mercado.
Muitos moram em prédios caindo aos pedaços que podem entrar em colapso a qualquer momento. E estes edifícios só são reconstruídos quando o governo está disposto a pagar a conta. A pessoa média em Mumbai tem menos espaço do que um prisioneiro americano.
A experiência das cidades indianas de Mumbai e Déli com a regulamentação de zoneamento é meramente ilustrativa. Há uma grande semelhança nas regulamentações de zoneamento entre as cidades indianas. Em Mumbai, Déli e outras cidades indianas, o índice de aproveitamento regulado é quase uniforme, mesmo entre áreas comerciais e residenciais.
Assim, os mercados de trabalho em Mumbai são fragmentados e a média de deslocamento é de aproximadamente uma hora. Ao redor do mundo, há grande variação entre os IAs de edifícios comerciais e residenciais.
Na maioria das cidades, os IAs são mais altos perto de corredores de trânsito de massa. Para permitir o redesenvolvimento de edifícios, os IAs regulamentados são geralmente mais altos do que os IAs dos edifícios existentes. As cidades indianas, no entanto, não estão em conformidade com essas normas. Os índices de aproveitamento nas cidades indianas têm pouca relação com os preços dos imóveis.
Mumbai é a cidade mais densa do mundo mas, no centro de Mumbai, o IA é de 1,33. Isso não acontece em nenhuma cidade global. Em 1964, planejadores urbanos decidiram descongestionar Mumbai restringindo o desenvolvimento imobiliário no centro. Eles acreditavam que poderiam descongestionar Mumbai restringindo o desenvolvimento imobiliário nas melhores partes da cidade.
O plano falhou. As regulamentações de zoneamento não impediram que as pessoas migrassem para Mumbai, Índia. Em vez disso, a resposta dos migrantes foi consumir cada vez menos espaço. Eles se estabelecem em espaços congestionados.
Eles constroem assentamentos informais em favelas. Eles moram em prédios onde pisos racham, paredes desmoronam, ratos comem bebês e água limpa é racionada. Eles ocupam prédios controlados por aluguéis, onde as pessoas vivem tão perto que disputas mesquinhas levam a tumultos. É uma piada para os planejadores que Mumbai seja agora a cidade mais populosa do mundo.
Existem, obviamente, muitas outras razões. Mumbai é uma das cidades mais geograficamente desafiadas. A terra é escassa em uma cidade construída na ponta estreita de uma península. Dois terços da terra em um raio de 25 quilômetros do centro de Mumbai são cobertos por água.
Grandes extensões de terras públicas permanecem ociosas dentro e nos arredores do centro de Mumbai. Grande parte das terras que pertenciam às usinas de algodão de Mumbai, há muito tempo fechadas, também permanecem ociosas. A cidade da Índia tem até um parque nacional que se espalha por uma área de 104 km².
Alain Bertaud, o maior especialista do mundo em regulamentações de uso da terra em países em desenvolvimento, há muito vem apontando como as regulamentações de zoneamento arruinaram Mumbai.
Mumbai não tem pontes que ligam o continente às docas. Como aponta Bertaud, estas pontes construídas na Baía de São Francisco e no Delta do Rio das Pérolas transformaram os passivos topográficos em ativos.
De acordo com Bertaud, com regulamentação de zonas costeiras tão rígidas quanto Mumbai, Nova York, Hong Kong, Singapura, São Francisco e Rio de Janeiro não teriam sido construídas.
Knight Frank uma vez estimou que uma casa de luxo em Mumbai custa 308 vezes a renda anual média na Índia. Em Nova York, uma casa de luxo custa apenas 48,4 vezes a renda média dos Estados Unidos. Os planejadores culpam a crescente população de Mumbai.
Isso não faz sentido. Em 1984, o consumo médio de espaço em Xangai era de 3,6 m². Ao permitir edifícios maiores, Xangai elevou o consumo médio de piso para 34 m² até 2010. As cidades em todo o mundo aumentaram o consumo de espaço ao permitir edifícios maiores.
Em 1910, 16 pessoas viviam em um andar típico de 920 m² em Manhattan. Em 2010, quatro pessoas viviam em um andar típico, porque o consumo de espaço aumentou quatro vezes.
Nas cidades mais saudáveis, quando a população aumenta, o consumo de espaço também aumenta. Mas esta é uma desagradável verdade que planejadores não querem ouvir.
Texto publicado originalmente no site Foundation of Economic Education em julho de 2016. Traduzido para o português por Gabriel Lohmann.
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