Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
É intuitivo acreditar que as regulações urbanísticas devem ser pensadas para reduzir os privilégios; embora na realidade eles aumentem os meios para tal.
18 de abril de 2015Quando o planejamento urbano é analisado como uma atividade política, e não do ponto de vista técnico, alguns aspectos essenciais do processo começam a fazer mais sentido e a demonstrar alguns perigos inerentes aos instrumentos urbanísticos. O que quero dizer com isso é que, deixando os aspectos técnicos de lado por um momento para enfatizar o processo político, é possível tornar mais claro o resultado desigual do planejamento urbano e as possibilidades de apropriação dos resultados positivos por certos grupos, sendo os custos arcados por toda a coletividade impactada pelo plano. Tudo sem agredir a legislação estatal.
Muitas vezes, inclusive, o propósito original do instrumento é contorcido de modo a beneficiar aqueles contra quem o instrumento foi planejado para atuar. Consideremos dois exemplos desse processo para ilustrar o que quero dizer.
Um dos exemplos trata da lei de zoneamento de uso e ocupação do solo. A minuta do Plano Diretor de um município inserido nas exigências do Estatuto da Cidade, discutido democraticamente e com ampla participação — como defende e define o Estatuto —, estabeleceu uma grande gleba na área rural como prioritária para preservação ambiental. Um dos maiores defensores dessa política era uma grande empresa que, durante as reuniões, enfatizava a necessidade de preservação de uma área específica dentro do município.
Porém, escondida por trás das “boas intenções”, restava a intenção de prejudicar uma empresa concorrente de explorar o subsolo daquela gleba defendida para preservação. A disputa no processo de elaboração do plano deixou de lado qualquer consideração realmente técnica e o resultado foi uma disputa política que nada tinha a ver com proteção ambiental, mas sim com a possibilidade de utilização de um novo instrumento para que uma empresa se beneficiasse à custa de um concorrente. O processo de concorrência saiu da esfera de mercado, na qual ambas teriam que investir em melhores formas de exploração da área e na produção e caiu na arena política, na tentativa de impedir a concorrência por meio da intervenção estatal.
O interessante dessa dinâmica é que ela atrai a participação de empresas, grupos e indivíduos no processo de discussão e elaboração dos planos não como forma de contribuir para o processo participativo, dando maior legitimidade a ele e à sua romântica busca pelo “interesse geral”, mas como forma de garantir exclusividade (rent-seeking). De modo oposto, existe a tendência de atração como forma de defesa contra ataques de empresas, grupos e indivíduos que utilizam a política para favorecimento próprio, que poderia ser justamente o caso da empresa prejudicada durante a elaboração do plano de outro município em que pudesse encontrar situação semelhante. Os custos gerados por estes lobbies, tanto de defesa como de ataque, deixam de ser investidos na produção de bens e se voltam para a produção de males.
Outro sintoma desse processo, mais psicológico, é que muitos fazedores de políticas públicas encaram essa disputa política como algo normal do processo, algo que não está fora da realidade. Parece a eles que é normal essa busca por privilégios na sociedade nesses esquemas políticos. Sem os meios políticos, o privilégio desaparece de cena, ou pelo menos é reduzido. Porém, parece ser algo intuitivo acreditar que todas as regulações urbanísticas devem ser pensadas para reduzir esses privilégios; embora na realidade eles aumentem os meios para tal coisa.
O segundo exemplo está sendo estudado pelo engenheiro José Ricardo de Faria e foca a aplicação do IPTU Progressivo no Tempo e o conceito de Função Social da Propriedade. Seu estudo ilustra a utilização desse instrumento com outro propósito àquele a ele relacionado: o combate à especulação imobiliária. Um dos casos estudados é a aplicação do instrumento no centro de São Paulo, onde diversos imóveis considerados desocupados sofreram melhorias promovidas por seus proprietários para evitar as sanções da legislação municipal. O problema, no entanto, é que esses imóveis já funcionavam como moradia. Pelo fato de ocuparem irregularmente aquelas edificações, as famílias não eram reconhecidas como legítimas moradoras pela prefeitura. Como consequência da melhoria generalizada na região, que compreende a área da Operação Urbana Nova Luz, os aluguéis nesse ambiente irregular subiram e a população original foi obrigada a se mudar.
Em outro estudo de caso do mesmo autor, na cidade de Curitiba, o propósito foi ainda mais explícito. “Está explicitamente vinculado a uma estratégia de revitalização urbanística que apresenta entre seus propósitos a dinamização e valorização imobiliária de uma região central da cidade, o Projeto Centro Vivo” (p.10). Para reforçar seu ponto, Faria cita a justificativa do autor do projeto de lei, o vereador Tico Kusma:
“A adoção do IPTU Progressivo pode contribuir para solucionar um problema frequente na cidade: as invasões. Em 2007, uma CPI foi instalada na Câmara de Curitiba e ficou comprovada a existência de muitas áreas ociosas, que não cumprem função social e ficam à mercê de invasores. Com a implantação deste sistema haverá redução desses espaços, diminuindo as ocupações irregulares.”
A conclusão do autor é que a função social da propriedade não está necessariamente vinculada à democratização da terra urbana. Além disso, os instrumentos urbanísticos a ela relacionados podem ser funcionais para desobstruir os entraves à valorização de regiões inteiras; justamente o oposto da justificativa para a aprovação dessa legislação. Essa dinâmica é semelhante à descrita por Kowarick (1979, p. 41), de que “o poder público impõe reformas, cujo custo está fora do alcance dos moradores mais pobres, forçando com isso sua transferência para as áreas da periferia”.
O fato de os instrumentos urbanísticos serem utilizados em favor de grupos de interesse não parece ser excepcional. Abordagens da ciência política, como aquelas elaboradas pelos teóricos da Escolha Pública, utilizam as ferramentas da ciência econômica para analisar os processos políticos e suas análises demonstram a utilização da legislação e regulamentações como formas lucrativas para alguns grupos de interesse à custa de toda a população. Não deveria ser nova a contestação de que políticas públicas são desviadas de seus propósitos ideais planejados para o benefício de grupos específicos. Essa parece ser mais a regra que a exceção, e o planejamento urbano não está isento desses problemas.
No entanto, como conclui Faria (P. 17), “a despeito das evidências de contradição, o prestígio do planejamento urbano politizado como instrumento de justiça urbana não é maculado, mesmo entre os militantes da reforma urbana”. Talvez o real problema urbano não tenha sido ainda aprendido, o que contribui para ferramentas que não atacam as causas, mas sim os efeitos. A técnica utilizada, apesar de sofisticada, pode estar sendo utilizada contra problemas diferentes daqueles que realmente prejudicam as cidades brasileiras. A idealização e o desejo por um processo político que foque o interesse comum, ao contrário de sua real utilização para interesses privados, estão levando à criação de cada vez mais meios de apropriação política.
Tendo em mente que planos diretores são, antes de tudo, planos políticos, podemos começar a buscar outras lentes para encontrar as reais causas e evitar a criação de leis que mais concentram privilégios e poder que podem cair nas mãos de grupos de interesse do que contribuir para sanar os reais problemas urbanos. Do contrário, veremos cada vez mais propostas de intervenção estatal para corrigir os problemas causados pelas propostas anteriores.
KOWARICK, Lucio. A Espoliação Urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
FARIA, José Ricardo Vargas de. Função social e IPTU progressivo: o avesso do avesso num desenho lógico. Anal do Encontro Nacional da Anpur. Volume 15. 2013
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