Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
A pandemia impactou de formas diferentes nossos centros urbanos. Considerando as particularidades de cada um deles, Frederico Holanda analisa quais foram os "pontos fora da curva''.
3 de junho de 2021No momento em que escrevo este artigo, o Brasil está na mais grave crise humanitária de sua história — não apenas uma “crise sanitária”, como se costuma comentar. A pandemia da COVID-19 matou, até 30 de abril de 2021, 411.854 de pessoas e, apenas nos últimos dias, a média móvel de mortes começou novamente a arrefecer — tendo chegado ao máximo de 3.125 em abril.
Epidemiologistas, microbiologistas, infectologistas etc. observam que o impacto da pandemia nas cidades brasileiras é fortemente idiossincrático: cada qual tem condições peculiares a considerar, antes de podermos ousar generalizações. Por outro lado, estima-se uma alta subnotificação (até um décimo dos casos reais), que, inclusive, varia entre cidades. Contudo, feitas as reservas, o que podemos observar no quadro geral?
Comento um grupo de situações brasileiras que pareceram exemplares. “Situações” porque há na lista cidades e bairros: as capitais brasileiras, as Regiões Administrativas de Brasília (que as chamarei como de fato o são: bairros) e Copacabana, dado seu caráter emblemático em configuração urbana, densidade, diversidade de práticas e de sujeitos sociais, e por ser uma das situações mais trágicas do país.
Estas observações não têm significação estatística, são exploratórias, ao contrário do que pretende, e pode realizar, o estudo em andamento de Vinicius Netto e colegas, As cidades na pandemia: o papel do tamanho e da densidade urbana, aqui publicado, que abrange 291 cidades brasileiras com mais de 100.000 habitantes, e que foi o gatilho para a origem deste texto. Mas o interesse reside no fato de os casos aqui apresentados serem, em boa medida, ante os estudos de Netto et al., “pontos fora da curva”. Por quê? O que explica a discrepância? Embora seja um pequeno número de exemplos, mesmo assim veremos algumas correlações significativas.
Quando analisamos as capitais brasileiras, as diferenças gritantes em letalidade, por exemplo, como o número absoluto de mortes pelo número absoluto de casos, resultam dos incríveis 9,2% no Rio de Janeiro a 0,6% em Porto Alegre; em outras palavras, se você pega o vírus no Rio, sua chance de morrer é 15 vezes maior que em Porto Alegre (a média brasileira está em 2,77% e a mundial em 2,1%).
Densidade urbana é um tema controverso, ao qual Netto et al. dão primordial atenção. Nossa amostra das capitais brasileiras revela, no entanto, uma correlação de mortes/1.000.000 hab., ou seja, mortalidade x densidades urbanas de apenas 29% e, se tomarmos as 5 capitais de menor mortalidade, a correlação com densidades é nula.
Foi por ter uma grande curiosidade com relação a Copacabana — sua urbanidade, vitalidade, diversidade — que a inserimos nas situações brasileiras estudadas. Sua densidade, de 365 hab./ha, é similar à de Manhattan, em Nova York, e 4,4 vezes maior que a de Fortaleza, 83 hab./ha (para tomarmos um município completamente urbanizado, e não comparar laranjas com bananas…).
No entanto, a mortalidade em Copacabana é apenas 1,9 vezes maior. Ela é também maior que a de todas as capitais brasileiras, inclusive o Rio, e só perde para um dos 30 bairros de Brasília. Contudo, a renda em Copacabana está acima daquela de 18 capitais brasileiras, a sugerir que outros fatores precisam ser considerados, não simplesmente a pobreza mas, por exemplo, a densidade de habitantes por metros quadrados no espaço doméstico: além das quatro favelas que sobem os morros e abrigam cerca de 10.000 habitantes, há grande incidência de sala-quarto conjugados, como no Edifício Master, tema do excelente filme homônimo de Eduardo Coutinho, ou no famoso “Duzentão” (antigo n. 200 da Barata Ribeiro, hoje 194), que abriga 300 conjugados de 24 m2 e mais 207 apartamentos de quarto e sala. Embora ainda não tenhamos coligido dados mais amplos sobre a densidade no espaço doméstico no bairro, sabemos ela favorecer o contágio, e isso também ficará claro nos bairros brasilienses.
Igualmente elevado é o percentual de idosos, cerca de 30%, segundo o IBGE, o mais alto do Rio, quiçá sem equivalente em qualquer outra situação brasileira. Ademais, Copacabana é um polo de turismo de prestígio planetário (como Fortaleza o é, em menor medida), tendo recebido, ainda na alta estação do início de 2020, uma quantidade imensa de estrangeiros originários de países onde o vírus já havia se instalado. Também, a emblemática praia e a quantidade de pessoas circulando nos outros espaços públicos — das maiores do mundo, pela densidade local e pela polarização exercida por Copacabana sobre o resto da cidade — decerto colaborou, antes das restrições do isolamento social, para o espraiamento do vírus (ponto para Netto et al.).
Ao considerarmos as relações entre prevalência (contaminação x população) e renda, e letalidade x renda nos bairros de Brasília, o quadro muda, a sintonia é mais fina. As diferenças entre situações brasileiras (valores que captam as médias das rendas das cidades) são menores que as diferenças intraurbanas, como no caso dos bairros brasilienses. Nessas últimas, como na velha piada, as distintas temperaturas da cabeça no forno e dos pés no freezer são captadas; nas situações das médias brasileiras, não. Isso é visto no coeficiente de variância, que indica a amplitude da diferença entre os valores, de 0,30 quanto à renda, para as situações brasileiras, e de 0,83, para os bairros da Capital. Dos 30 bairros de Brasília considerados, a forte correlação inversa renda x letalidade subiu mês a mês, tendo passado de 36% em julho de 2020, para 72% no mês passado: o vírus migra para os pobres (Gráfico 1).
A densidade do Lago Sul em Brasília, o bairro mais rico, é 6,66 hab./ha, mas a população é “globalizada” e onde a COVID se instalou por primeiro. Lá, a prevalência é de 19.100 casos/100.000 hab., enquanto no bairro Estrutural, a região mais pobre e com densidade de 109 hab./ha, 16 vezes maior que no Lago Sul, é de 5.115 casos/100.000 hab., apenas 43% da prevalência do Lago Sul.
Mas os números mudaram velozmente e a migração do vírus para a periferia pobre foi intensa. A inversão fica clara no Gráfico 2, ao registrar a mortalidade em oito bairros escolhidos como exemplos, abrangendo todas as faixas de renda. O Lago Sul, o bairro mais rico, primeiro lugar em mortalidade em 30/4/20, já é o último em 31/7/20. Com casos e mortes inicialmente concentrados nas regiões mais ricas, particularmente no Lago Sul e no Plano Piloto, os índices se inverteram, principalmente quanto a mortes, escancarando, como em outras cidades brasileiras, as desigualdades sociais: hoje, o Lago Sul, a região mais rica, tem 2.416 mortes/1.000.000 hab., Ceilândia, a 40 km do centro metropolitano, tem 2.755 mortes/1.000.000 hab. (+14%); a letalidade (mortes/casos) no Lago Sul é de 1,26%, em Ceilândia, 2,98%, 2,36 vezes superior.
Há dois bairros — Taguatinga e Samambaia — com populações próximas ao do Plano Piloto, que já o ultrapassaram em mortes: 776 e 604, respectivamente, contra 534 do Plano Piloto; na sequência estão Gama e Planaltina, com 432 e 409 mortes respectivamente (no ritmo da evolução da pandemia, não admira que também venham a ultrapassar o Plano). A migração das mortes para a periferia é ilustrada pela diferença da correlação distância ao centro x letalidade, agora consideradas o conjunto dos 30 bairros: entre julho de 2020 e abril deste ano, ela passou de 37% para 65%, e continuará a subir — só nos últimos 30 dias cresceu 8%.
O perfil ocupacional importa, revelando, por exemplo, a vulnerabilidade dos trabalhadores autônomos: a correlação letalidade x % trabalhadores autônomos é 35%. Por outro lado, o percentual da população sem plano de saúde igualmente deixa essa parcela muito vulnerável: a correlação letalidade x aqueles sem plano de saúde é muito grande: 67%; e está subindo.
Mais significativa é a correlação quando consideramos um indicador de qualidade de vida mais abrangente, como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), da ONU: IDH x letalidade é muito grande e, claro, negativa e, também, continuamente subindo: -86%, ou seja, menor IDH, maior letalidade. Como outros estudos já mostraram, as densidades urbanas importam menos que as densidades no espaço doméstico.
A correlação letalidade x metros quadrados da residência por habitante é alta e, claro, negativa: -61%, mas a correlação área x população negra + parda = -86%, ou seja, mais escura a pele, menor a área disponível. Por outro lado, igualmente, a pobreza, a periferia e a letalidade têm cor: letalidade x negros + pardos = 54% (no caso de letalidade x brancos = -54%, ironicamente o mesmo valor… com sinal trocado); distância ao centro x negro + pardos = 49%.
Os achados, como em outras cidades brasileiras, escancaram a desigualdade socioespacial em Brasília, a cidade onde a apartação entre as classes é a mais radical entre nossas urbes. É evidente que isso incide também no impacto que a pandemia tem em seus habitantes. Fica a lição que temos de considerar variáveis das cidades como um todo, mas temos também de levar em conta os dados específicos de cada cidade, em sintonia mais fina, sem o que dados mais agregados podem levar a leituras equivocadas. A literatura já demonstrou à exaustão, em muitos aspectos, que Brasília é uma cidade peculiar. Comparar esses dados em sintonia fina com os de outras cidades brasileiras pode acrescentar um conhecimento importante sobre suas particularidades.
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