Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
O que a Arábia Saudita, Brasília e o Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável têm em comum?
13 de outubro de 2022Nos últimos meses, a internet tem sido inundada por vídeos da nova maravilha futurista do Oriente Médio: Neom, ou The Line, uma cidade planejada pelo governo da Arábia Saudita para fazer inveja aos vizinhos de Dubai e Abu Dhabi. Como escreve Henry Grabar, a cidade é uma coleção de clichês como “smart city”, “carbono zero” e “cidade de 15 minutos”. Em um mundo onde imagens viralizam mais rápido do que se pode construir cidades, esses conceitos são uma poderosa ferramenta de marketing. Mas, até o momento, não foi oferecida nenhuma explicação de como eles serão aplicados na prática.
Tudo em The Line é colossal. Visto do alto, o projeto é uma linha gigantesca de 170 km riscando a Península Arábica. Do solo, são dois imensos arranha-céus paralelos de até 500 metros de altura. A cidade pretende abrigar até 9 milhões de pessoas, que vão ter que se conformar em viver entre dois muros. Isso se o projeto for de fato construído, o que não parece muito provável.
O príncipe Mohammed bin Salman não poderia ser mais claro quanto à intenção do projeto. “Quero construir minhas pirâmides”, disse o saudita. Deixar um legado que perdure milênios é um desejo comum entre monarcas — e também entre arquitetos e urbanistas. Apesar da pouca materialidade, a Arábia Saudita está empenhada em vender o sonho distribuindo vídeos espetaculares nas redes sociais.
No centro de tudo está a forma da linha, supostamente a maneira mais eficiente de integrar uma cidade com trens super rápidos. Neste artigo sobre a cidade linear, o cientista espacial Michael Batty alerta que é preciso levar em conta o headway, ou seja, o espaço entre um trem e outro, que garante a segurança quando as composições freiam e aceleram ao chegar e sair das estações. Além de reduzir a velocidade de deslocamento, os headways impossibilitam que as estações fiquem muito próximas umas das outras. Uma cidade não pode funcionar apenas com pedestres e trens, como o governo saudita sugere.
Apesar de toda a propaganda, o conceito de cidade linear não é nenhuma novidade. Planos assim apareceram em 1882, na Espanha, em 1930, na Rússia e em 1965, nos Estados Unidos. As imagens de The Line parecem ter saído de um filme da Marvel, mas o conceito não é muito diferente da Roadtown de Edgar Chambless. Todas essas propostas seguem o mesmo esquema básico: prédios paralelos em volta de um eixo de transporte rápido. Além disso, têm em comum o fato de nunca terem sido construídas.
Um dos primeiros países a receber uma proposta do gênero foi justamente o Brasil. Quando o urbanista Le Corbusier visitou o Rio de Janeiro pela primeira vez, em 1929, imaginou um gigantesco edifício-autoestrada serpenteando entre os morros. Seu projeto era um enorme bloco linear de apartamentos com garagens e pistas de rolamento nos andares de cima. Apesar de o edifício nunca ter sido construído, as teorias de Le Corbusier causaram impacto entre os urbanistas brasileiros. Décadas mais tarde, elas inspirariam aquele que talvez seja o maior exemplo de cidade linear no mundo: Brasília.
Lúcio Costa imaginou a nova Capital como o cruzamento de dois eixos: o Monumental, onde estão alinhados os edifícios cívicos e administrativos, e o Rodoviário, em torno do qual estão as superquadras residenciais.
O Eixo Rodoviário deveria garantir fácil acesso a qualquer ponto da cidade via automóvel. A rodovia permite que os carros andem a 80km/h, sem semáforos e cruzamentos, no sentido Norte-Sul. Ao mesmo tempo, prejudica a mobilidade na escala local, que depende de deslocamentos no sentido Leste-Oeste. Devido à sua larga dimensão, o Eixo Rodoviário age como um muro que separa o Plano Piloto em duas partes. A situação é especialmente ruim para quem precisa atravessá-lo a pé ou de bicicleta.
Hoje, quase 90% da população de Brasília mora em regiões que cresceram em volta do Plano Piloto. Michael Batty aponta que esse é um destino comum para cidades planejadas com a forma linear.
Em todas as cidades, há zonas que concentram características mais desejáveis, como uma maior variedade de comércio e serviços. Isso acontece porque a atividade comercial tem grande sinergia, ou seja, as lojas atraem mais consumidores quando estão perto de outras lojas.
Uma zona também pode se tornar mais desejável por estar próxima de uma amenidade, como uma escola, um parque, ou uma estação de metrô. Como as pessoas estão dispostas a pagar mais para ficar perto das amenidades urbanas, o preço dos imóveis não é uniforme por toda a cidade.
Se The Line existisse, seria impossível evitar o surgimento de centralidades em alguns pontos. É isso que propõe a Bid Rent Theory, desenvolvida na década de 1960 a partir de pioneiros da Economia Urbana como William Alonso, Richard Muth, e Edwin Mills. Como todo modelo, essa teoria não é uma descrição literal da realidade, mas é bastante útil para compreender a dinâmica de preços nas cidades.
Dentro do modelo que a teoria propõe, os preços tendem a ser mais caros perto das centralidades urbanas. Em geral, os prédios dessas regiões são mais altos, e os imóveis, menores. Por isso, não se vê muitos arranha-céus nos subúrbios ou nas periferias das cidades, com exceção dos casos em que essa distorção é criada por uma legislação restritiva nas áreas centrais. Caso emblemático destas distorções é o de Belo Horizonte, onde os maiores edifícios não são construídos na capital mineira, mas na vizinha Nova Lima, junto ao limite municipal.
Na maioria dos casos, porém, conforme nos afastamos da centralidade, o acesso à terra urbana fica mais barato, possibilitando a construção de casas maiores ou chácaras em áreas mais distantes, ao invés de apartamentos. Essa distribuição dos preços de imóveis conduz a cidade para a forma de círculos concêntricos, em que os anéis mais próximos ao centro são mais valorizados.
Assim, a forma linear só poderia ser mantida pela supressão artificial dessa dinâmica de preços, o que exigiria um controle urbano excessivamente rígido, reprimindo qualquer tentativa de ocupação nos arredores dos muros. Isso significa que o governo saudita estaria proibindo a edificação de terrenos valorizados pela proximidade com The Line, o que tornaria o financiamento da infraestrutura urbana pouco eficiente.
Mas e se ao invés de uma única linha, a cidade fosse planejada em torno de vários eixos? Essa é base conceitual do DOTS, ou Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável. Segundo essa estratégia, o planejamento urbano deve priorizar o adensamento próximo à eixos de infraestrutura de transporte de massa. O objetivo é colocar um número maior de habitantes perto de grandes avenidas, estações de metrô e corredores de ônibus, facilitando o escoamento do tráfego entre residências e locais de trabalho.
O DOTS costuma ser bem visto entre urbanistas, que já aplicaram seus princípios em várias cidades ao redor do mundo. Apesar disso, o DOTS carrega contradições parecidas com as das cidades lineares. Como já vimos, The Line justifica sua forma com o argumento de que a população deve estar próxima à linha de trem que correrá em seu subsolo. De forma semelhante, o DOTS dá preferência ao adensamento linear com o argumento de que é preciso situar a população perto dos eixos estruturadores de transporte.
Adensar em torno do transporte de massas não é em si uma má ideia. O problema é quando o planejamento ignora a demanda real das regiões e sua distância até os centros de comércio e serviços. Em São Paulo, por exemplo, o Plano Diretor determina um potencial construtivo semelhante para a região da Avenida Paulista e para o entorno de estações de metrô próximas ao limite da mancha urbana. Ao mesmo tempo, regiões de baixa densidade como o Jardim América não podem ser adensadas por se tratarem de “miolos de bairro”, mesmo que estejam ao lado das zonas mais desejadas da cidade.
Essa distorção afasta os profissionais das regiões onde podem utilizar seus talentos, o que prejudica a dinâmica econômica e a geração de empregos. Além disso, impede que a Prefeitura capture milhões de reais através da venda de potencial construtivo, que poderiam financiar obras nas regiões menos equipadas do município. Isso poderia ser feito através de mecanismos como a Outorga Onerosa, que permite que os proprietários de imóveis construam acima do coeficiente básico estabelecido pela legislação mediante o pagamento de uma contrapartida financeira.
Muitos princípios do DOTS são de fato úteis. Mas a aceitação acrítica dessa estratégia mostra o quanto o modelo linear continua presente na cabeça dos urbanistas. Conjugar o adensamento nos eixos de transporte ao desenvolvimento de regiões próximas aos centros geraria cidades mais compactas, caminháveis e menos dependentes do automóvel.
Quanto a The Line, basta dizer que criar uma cidade do zero raramente é a solução. Seria melhor para todos se os governos se concentrassem em resolver os problemas das cidades que já existem.
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