Nem só de festa vive um espaço público
Há dez anos orientei um ensaio de uma estudante de graduação sobre eventos de música e dança, gratuitos, organizados por iniciativa popular em espaços públicos. Sua pesquisa selecionou três eventos periódicos em Brasília à época: um que ocorria semanalmente, outro que ocorria mensalmente, e um que ocorria anualmente. O objetivo era conhecê-los melhor, investigar as características dos lugares em que eles ocorriam para entender a razão de terem sido escolhidos, e a relação disso com sua periodicidade. Entrevistas com os organizadores e visitas in loco foram feitas.
O primeiro era um encontro de dançarinos de zouk, em geral jovens e adultos, que precisavam apenas de uma grande área nivelada para servir como pista de dança, com iluminação pública satisfatória e eventualmente uma cobertura, caso chovesse. A Biblioteca Nacional, no centro da cidade, ao lado da rodoviária e da estação central do metrô, prestava-se bem a isso. O evento ocorria à noite, e a música vinha do carro de som dos organizadores. Ou seja, como era só chegar e posicionar o carro, o evento ocorria sem esforço, favorecendo a periodicidade semanal.
O segundo era um encontro para dançar hip hop, rap, ragga e outras danças urbanas, tendo como público principal adolescentes de todo o DF. Acontecia aos domingos à tarde, na extensa área externa do Museu Nacional, também no centro. Para o funcionamento dos aparelhos, era preciso utilizar a energia fornecida pelo Museu. O encontro demandava certo esforço, já que era preciso providenciar uma estrutura para cobrir o equipamento, caso chovesse, além de banheiros químicos, daí sua periodicidade mensal.
O terceiro era consagrado ao forró de pé de serra, que acolhia de jovens a pessoas de mais idade, adultos e crianças. Ocorria numa das famigeradas passagens subterrâneas do Eixão: estreita, deteriorada por vandalismo, sem ponto de energia. O dia escolhido era um domingo, quando o Eixão abre para os pedestres, o que facilitava o ir e vir dos seus frequentadores. O local exigia extensa preparação, e por isso o evento ocorria anualmente.
Dá para imaginar que a escolha do terceiro lugar pareceu mais intrigante que a escolha dos dois primeiros.
Ao ser perguntado sobre a razão da escolha da passagem subterrânea, o organizador do forró respondeu que a escolheu justamente por ser um local inusitado, sem estrutura. Mesmo sabendo que daria muito trabalho prepará-lo, ele queria “quebrar o paradigma do medo”, mostrar que espaços pouco movimentados podem ser ocupados para trazer segurança aos pedestres.
A escolha de locais pouco propícios à realização de eventos, que demandam enorme preparação, não é incomum. Há um quê de transgressão e originalidade em se fazer festas em locais estranhos, segregados e caídos. Eles ficam lotados, vivos, interessantes e rendem fotos maravilhosas: a decadência de um lugar em contraste com a efervescência de uma festa é altamente instagramável.
Acontece que depois que a festa acaba é como a Cinderela depois da meia-noite: tudo volta a ser como antes, a carruagem volta a ser abóbora e tal.
No caso da passagem subterrânea, ela voltou a ser aquele lugar sujo, fedido, vazio, inseguro e fora de mão ao qual as pessoas que não têm carro estão submetidas, diariamente. Não houve nenhuma desestigmatização. Não é porque eu estive lá numa festa que eu vou resolver passar ou ficar por lá. A intenção foi boa, a festa foi legal, mas os atributos que tornam o lugar péssimo para apropriação cotidiana continuam todos lá. Nada mudou.
Um espaço público bem-sucedido de verdade é aquele que fica cheio no cotidiano, sem esforço ou programação alguma. Isso porque seus atributos – globais e locais – favorecem a passagem e a permanência. Vamos ver quais são eles nas próximas colunas.
Mas a gente adora festa, tá? Pode chamar que a gente vai.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.