A culpa é dos pedestres

31 de março de 2023

Se as pessoas andassem de carro, não passariam por nada disso.

No meio do Plano Piloto de Brasília tem uma rodovia com 7 faixas: o Eixo Rodoviário (Eixão). Ele possui 13,5 Km de extensão, velocidade de 80 km/h e é ladeado por mais duas vias (os Eixinhos L e W), totalizando uma barreira de 160 m de largura.

Não há semáforos. A forma pensada desde a concepção da cidade para os pedestres o atravessarem é por meio de passagens subterrâneas, que são estranhas, perigosas, sujas e distam 720 m umas das outras (na Asa Norte. A Asa Sul tem passagens de metrô entre elas, mais seguras, acessíveis e limpas).

Na pior das hipóteses, uma pessoa na Asa Norte que o queira atravessar, e esteja exatamente entre duas passagens, ao invés de andar 160 m na superfície, ela tem que andar 990 m, com trechos de descida e subida, se quiser continuar na mesma direção. Isso dá 830 m a mais. Bônus: a insegurança de ser assaltada, sofrer violência, e a experiência desagradável de caminhar tensa por uma estrutura deteriorada e malcheirosa.

Qual a alternativa? Atravessar em nível, na cara e na coragem, esperando uma brecha entre os carros. Considerando que esses 820 m a mais dariam uns 10 minutos de caminhada, muita gente acha que vale à pena ficar parado na beira das pistas esperando para atravessar. É uma escolha, um risco calculado, todo mundo atravessa correndo. Um horror.

Quando as pessoas avaliam que a brecha vai demorar demais para acontecer, ou que há gente suficiente para atravessar junto no buraco, diminuindo os riscos de violência, elas usam a passagem, mesmo que o trajeto seja mais longo.

A escolha da pessoa fica então entre os riscos de ser atropelado ou sofrer algum tipo de violência, entre perder e economizar tempo. A única coisa que não escolhem é ficar tranquilos com sua escolha. A tensão de atravessar essa barreira está presente, sempre. Os números, tanto de atropelamentos quanto de assaltos e estupros, não me deixam mentir.

O problema é antigo como a cidade. Lembro-me de ter ficado indignada e ter escrito algo depois de uma reportagem de 2010 sobre o grande número de atropelamentos no DF. Mostraram pessoas atravessando o Eixão e uma BR em nível, e disseram que elas põem em risco suas vidas porque querem ganhar tempo, e aí não usam as passagens subterrâneas e as passarelas.

Um homem declarou que as passagens subterrâneas estão deterioradas, sujas e escuras, e que por isso não as usam. O comentário final do repórter foi algo como “Mesmo que as passagens sejam sujas, fedidas e perigosas, use-as. Vá com alguém, se puder, para ter mais segurança, mas use-as para preservar sua vida”.

É claro que há gente imprudente e irresponsável, mas me lembro de ter terminado de ver a matéria sem acreditar que toda a culpa dos atropelamentos tenha sido dada aos pedestres. Aos pedestres e sua pressa de chegar mais rápido aos lugares.

Aos pedestres e sua preguiça infinita que os impede de subir e descer escadas e rampas, o que aumentaria apenas umas cinco vezes mais o trajeto que eles, por um problema qualquer, não fazem confortavelmente sentados em um veículo próprio motorizado. Aos pedestres e sua mania esnobe de achar importante andar por lugares limpos e iluminados.

Aos pedestres e sua falta de confiança no próximo que está parado num canto da passagem escura (e naqueles outros dois que estão um pouco mais afastados, mas que parecem conhecer o primeiro…). Aos pedestres e sua crença ingênua de que a cidade deveria preocupar-se com as pessoas e ser desenhada para elas.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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