Em colunas passadas, já abordei a problemática dos afastamentos obrigatórios, que transformam nossas cidades em um emaranhado de vazios sem função clara. Mostrei como a lógica dos recuos, aplicada lote a lote, cria edifícios rarefeitos, isolados em terrenos que nunca se somam a um desenho urbano coerente. Apontei algumas soluções possíveis para esse impasse, mas volto agora ao tema para explorar outro caminho: a ideia de que os recuos e demais recursos urbanísticos deveriam ser pensados na escala da quadra — e não do lote privado.
Quem caminha pelas cidades brasileiras reconhece a cena: edifícios altos plantados no meio de seus terrenos, cercados por afastamentos que não se conectam. Esses espaços residuais, quase sempre inviáveis para uso coletivo, resultam em uma urbe fragmentada, onde a rua perde clareza e a quadra se desmancha em pedaços. O que era prometido como ventilação, iluminação e harmonia acaba se convertendo em uma paisagem rarefeita, pouco funcional e desinteressante.
O problema está na escala. O urbanismo brasileiro insiste em acreditar que o somatório de decisões individuais — cada edifício cumprindo suas próprias regras — produzirá um todo ordenado. Mas a realidade mostra o contrário: muitas vezes um edifício novo respeita um recuo que não serve a propósito algum, já que ao lado pode existir uma construção mais baixa que nunca lhe fará sombra ou bloqueio, e vice-versa. Assim, o recuo se cumpre formalmente, mas sem entregar benefício real à cidade.
Pensar os recuos por quadra mudaria esse jogo. Se recuos, alturas e ocupações fossem desenhados em conjunto, seria possível criar ambiências mais claras para a forma urbana. Não se trata de impor uniformidade, mas de estabelecer uma base coletiva que permita diversidade sem abrir mão de coerência. A quadra passaria a ser a unidade de desenho — não o lote isolado — e cada edifício contribuiria para a forma do todo, em vez de apenas para o seu quintal.
Esse raciocínio abre espaço também para maior flexibilidade. A principal questão é que os recuos obrigatórios são genéricos, sem levar em conta as condições reais de cada quadra. Isso faz com que as edificações fiquem incompatíveis entre si: uma respeita afastamentos desnecessários enquanto a vizinha não se beneficia deles, resultando em espaços inúteis e uma forma urbana fragmentada. O que importa é o resultado coletivo, não a soma de sacrifícios individuais.
Aqui, o exemplo de Nova York é ilustrativo. No sistema de air rights, o direito de construir é um ativo que pode ser transferido entre vizinhos. Se um edifício não utiliza todo seu potencial construtivo, pode vender esse excedente a outro, que ganha em altura ou área.
Adaptado à nossa realidade, esse mecanismo poderia ser aplicado aos recuos: em vez de cada lote ser forçado a abrir mão de espaço de forma aleatória, esses direitos poderiam ser negociados para conformar uma quadra coesa, com espaços de fato úteis à cidade. De quebra, esse arranjo ainda pode gerar recursos financeiros tanto para o proprietário — que monetiza um direito que não utilizaria — quanto para o governo, que pode arrecadar taxas e direcioná-las a melhorias urbanas.
O urbanismo brasileiro precisa superar a crença de que o lote privado, isoladamente, é capaz de produzir forma urbana de qualidade. Não é. Continuar insistindo nessa lógica é perpetuar o fracasso das nossas quadras e ruas. O futuro do planejamento passa por deslocar a escala de regulação para onde a cidade realmente acontece: na quadra, na rua, no espaço coletivo. Quando isso acontece, a altura deixa de ser o problema em si e passa a ser apenas a consequência de uma edificação compatibilizada com a quadra e integrada ao conjunto urbano.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.