Recuos laterais e frontais

2 de fevereiro de 2024

O espaço entre a moradia e a calçada pode ser muito legal, desde que visível.

Há poucas semanas tive uma ótima conversa com Felipe Cavalcante, para gravar um podcast para o Somos Cidade, que generosamente me premiou ano passado por esta coluna. Felipe perguntou a minha opinião sobre recuos frontais, pois eu havia sido enfática quanto à necessidade de não se ter recuos laterais, mas não quanto à necessidade de não se ter recuos frontais. “Eu não entendi bem qual é a sua posição”, ele disse. Eu respondi, mas ainda assim achei que valia um texto sobre o tema.

Fachadas contínuas, que obtemos quando os prédios têm que ocupar toda a frente dos lotes, colando-se aos prédios vizinhos, ou seja, sem recuos laterais, são uma coisa muito bacana para um espaço público. Como os prédios só podem abrir janelas e portas para o espaço público ou para dentro de seu próprio lote, as chances são altas de termos mais aberturas que vedações voltadas para as ruas, o que favorece a copresença e a cociência. Assim, percorremos a cidade, de dia e à noite, olhando as janelas e varandas dos prédios, e isso aguça nossa curiosidade, aumenta a sensação de segurança, faz a mobilidade ativa ser uma experiência mais prazerosa.

A ausência de recuos laterais faz com que os edifícios aproveitem mais as frentes dos lotes, o que permite que elas sejam mais estreitas, aumentando o número de lotes por quadra. Isso é mais variedade de prédios, apartamentos, lojas, escritórios, mais portas para passar ao logo da quadra e, consequentemente, uma quadra mais variada e interessante.

A contiguidade dos edifícios nos faz, ainda, percebê-los como unidades, limites contínuos, alinhados, que delimitam ruas, praças, parques, orlas, podendo conferir-lhes maior identidade. Os edifícios, mesmo que de linda arquitetura (que não deixará de ser notada individualmente por estar compondo um conjunto), passam a ser um fundo para o que mais importa numa cidade: os lugares onde acontece a vida urbana, por onde as pessoas passam e permanecem.

Em resumo, sou absolutamente a favor da obrigatoriedade do recuo lateral zero.

Agora vamos aos recuos frontais.

Não é que eu esteja traindo o movimento em favor da obrigatoriedade do recuo frontal zero… veja bem! Em ruas comerciais, é imprescindível ter fachada ativa, e isso se obtém quando o térreo está no limite da calçada, abrindo portas para ela, mostrando vitrines. No entanto, nem todas as ruas de uma cidade podem ter térreos comerciais. Por mais densa que ela seja, haja gente para comprar tanto! Além do mais, se a gente advoga pela cidade diversa, é importante ter ruas mais movimentadas e outras mais tranquilas.

A verdade é que a maioria das ruas de uma cidade não vai ter fachadas ativas. Vai ter lotes com uso residencial e, nesse caso, garantidas certas condições, muitas vezes é mais legal ter afastamento frontal que não ter.

Explico.

Uma loja quer que você ande pela calçada olhando para dentro dela, vendo seus produtos. Por isso, ela se abre para a rua, facilita o ingresso das pessoas e promove a permeabilidade visual.

Uma moradia nem sempre é assim. Por mais que a gente adore espiar a casa dos outros, a gente costuma não gostar muito de que os outros espiem a nossa casa. Essa comunicação tão franca entre o ambiente privado, doméstico, e a vida na cidade, presente em tempos antigos, é difícil encontrar nos tempos atuais, especialmente em cidades maiores. Hoje, se nossa moradia térrea não tiver recuo frontal, vamos vedar nossas janelas e portas, privando-nos de iluminação e ventilação naturais, eliminando qualquer tipo de permeabilidade ou transparência, para que transeuntes xeretas não invadam nossa privacidade. O efeito para quem passa ao lado é o mesmo de uma parede cega.

Mas… se houver um afastamentinho frontal, desde que não haja fronteira secundária ou que ela não seja opaca, a gente vai passar ao longo dessas casas e vai ver vasos de plantas, bicicletas encostadas, algum brinquedo espalhado, sapatos do lado do capacho, bancos, enfeites divertidos de jardim, carros estacionados. Vai ver moradores, porteiros, entregadores, visitantes, jardineiros movimentando-se nesse trecho do lote, nessa zona de transição ou amortecimento que Jan Gehl e Christopher Alexander chamam de fronteira suave (soft edge), e vai-se distrair com o que vê – ou com o que imagina, a partir do que vê.

Nesse recuo frontal completamente visível do espaço público, os moradores dos térreos podem ver o movimento da rua, manter a iluminação e a ventilação naturais, ao mesmo tempo em que escolhem o que querem compartilhar com os transeuntes, estendendo (se quiserem) para a í sua vida privada. Assim, à vida na calçada podem ser somada várias outras vidas, pequenas histórias, cenas cotidianas, coisas que vão virar assunto na nossa hora do jantar.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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