Fronteiras primárias, secundárias e a casa da minha mãe

29 de setembro de 2023

Como seria bom se as casas não desconfiassem da gente.

A casa da minha mãe é a única na sua rua que tem um murinho baixo, com uma grade igualmente baixa em cima, numa altura em que um adulto consegue se debruçar e que a gente, criança, pulava sem a menor dificuldade (a gente pulava por diversão, porque o portão nunca teve cadeado e pode ser aberto por qualquer pessoa). É uma casa térrea, e a visibilidade para o interior do seu jardim frontal é total. Dá pra ver quando o jornaleiro jogou o exemplar do Correio Braziliense enfiado dentro de um saco plástico na porta e ela ainda não pegou, ou quando o imenso cacto está dando frutas. Com sorte, é possível encontrar aquela mulher linda molhando as plantas do jardim, algumas vezes na semana.

As demais casas da rua têm grades altas, ou uma combinação de: grades e muros altos, grades e muros altos e vidros temperados, ou grades e cercas vivas altas. A gente chama esses elementos colocados nos limites da propriedade privada, quando o edifício está recuado, de fronteiras secundárias. Dali para dentro, o espaço não é mais público, mas pode estar disponível para o deleite ou a curiosidade do público, se ficar visível. A depender da transparência das fronteiras secundárias, podemos ver as fronteiras primárias, que são os limites dos próprios edifícios, das casas, suas paredes, com ou sem portas e janelas, que se voltam para dentro de seus lotes ou diretamente para o espaço público. Julienne Hanson e Reem Zako trazem excelente definição e classificação desses dois tipos de fronteiras neste artigo.

As fronteiras secundárias podem ser altas ou baixas, constituídas de diferentes materiais, ser ou não contínuas, ter ou não portas de acesso, permitir ou não a visibilidade do interior da propriedade. As propriedades podem, também, resolver não ter fronteiras secundárias, e a gente ama quando isso acontece (mas é difícil de ocorrer, a gente sabe, especialmente em lotes residenciais).

A fronteira primária da casa da minha mãe, ou seja, sua própria fachada frontal, é uma parede alinhada com a rua, com três grandes janelas venezianas com jardineiras de gerânios, mais duas janelas altas de banheiro, um nicho onde fica a porta de entrada, e a porta com vidro canelado da área de serviço. Dá pra ver quando ela acordou, porque abriu as janelas, uma sendo a da sala de TV, ao lado da porta de entrada. Nos dias/horários de jogo (qualquer um, ela ama esportes), dá pra ouvir o barulho da televisão e algumas eventuais exclamações ou gritos de gol. À noite, as janelas se fecham, mas dá pra saber se alguém está na área de serviço ou usando o banheiro, por conta das luzes acesas.

As fachadas/fronteiras primárias da maioria das demais casas têm, no térreo, paredes cegas, muros da área de serviço, vidros fumês, reentrâncias e saliências que fazem com que as portas e janelas não se alinhem com a rua ou se voltem para ela.

Se você descer aquela rua, vai reparar que a casa da minha mãe, mesmo sem ser muito bonita, chama atenção. É a mais legal de se passar do lado, e você poderia muito bem não saber exatamente o que a faz assim, se não lesse esta coluna. É aquela cuja combinação de fronteiras primária e secundária a fazem mais acolhedora, trazem-na mais para perto do transeunte, fazendo-o se sentir benquisto.

E o transeunte contemporâneo fica no dilema… entre gostar da sensação que a casa lhe transmite — imaginando como seria bom se todas as casas lhe tratassem bem desse jeito —, e estranhar a vulnerabilidade que suas fronteiras lhe inspiram (“Como assim, essa casa aberta? Esse povo não tem medo de bandido?”). Ele então, preocupado, pensa em como essas fronteiras poderiam ser alteradas para garantir a segurança dos seus moradores, sem perceber que isso o incluiria definitivamente na vala comum dos considerados bandidos até segunda ordem, e tornaria o seu trajeto pela cidade e o seu cotidiano um pouco piores.

[…]

Em tempo. Eu sei, você está pensando… “mas e a segurança?”, e eu adoraria dizer que, apesar de a casa ser assim, ela nunca foi assaltada. Mas ela, sim, foi assaltada uma vez, desde 1980, quando nos mudamos para lá. Foi assaltada como qualquer outra. Suas características de interface não a fizeram mais visada que as demais casas da rua.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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