Pilotis não são espaços públicos

15 de março de 2024

Eis porque os conflitos não surpreendem

Estávamos fotografando superquadras, meu amigo Reinaldo e eu. Na 214 Norte tem um edifício com implantação tal que, a oeste, fez com que ele estivesse mais ou menos no nível da rua e, a leste, gerou um paredão cego de 170m de comprimento para abrigar a garagem. Assim, seu pilotis, ao invés de permitir a passagem livre de pedestres de um lado para outro, como pensado por Lucio Costa, virou uma varanda para o interior da quadra.

(O que é o pilotis? Um pavimento térreo livre, o “embaixo do prédio”, que se pode atravessar e onde se pode permanecer, muito característico dos edifícios residenciais do Plano Piloto de Brasília).

Aproveitando, então, a vista privilegiada que dali se tinha, começamos a tirar fotos, fingindo não ver, pelo canto do olho, o porteiro incomodado interfonando para alguém. Passados alguns minutos, um senhor veio ter conosco. “Bom dia”, ele disse. “Bom dia”, respondemos. “Vocês estão fotografando, é?”. “Sim”.

Claro que poderíamos ter sido menos lacônicos e dito: “Olha, somos da Universidade de Brasília, estamos fazendo um estudo sobre superquadras e escolhemos algumas para fotografar. Como este prédio oferece uma boa vista da quadra, viemos aqui. Não vamos nos demorar, não se preocupe.” Mas não falamos nada. Apenas continuamos o que estávamos fazendo.

Então, ele disse: “Eu sou o síndico deste prédio”. Me deu vontade de dizer: “Parabéns!”, mas me segurei. Apenas olhei para ele e sorri. Ele falou algo de que não me lembro e foi para a guarita conversar com o porteiro, sem tirar o olho da gente.

Imagine que você tem uma casa com jardim e, nele, tem alguém desconhecido. Ora, essa pessoa está claramente no seu espaço privado, ou seja, só poderia estar ali mediante convite ou autorização. Se ela não mora ali nem foi convidada ou autorizada, ela está num lugar que não lhe pertence, e é preciso que ela explique sua presença: “Desculpa, tia, só vim pegar minha bola que caiu aqui. Já estou saindo!”

A gente nunca precisa explicar nossa presença num espaço público. Ou nunca deveria, se o espaço for verdadeiramente público. Ele pertence a todos.

Pela concepção de Brasília, o pilotis seria um espaço público. Mas ele é mesmo? Se é, por que incomodamos o porteiro e o síndico com nossa presença física e nossa ausência (proposital) de explicações?

Não havia absolutamente nada demais em estarmos ali. Não estávamos fazendo nenhum “mau uso” do lugar, não estávamos pelados ou nos “comportando inadequadamente”, não estávamos produzindo nenhum ruído, nada. Éramos apenas duas pessoas em pé com uma câmera. Mas… éramos desconhecidos no pilotis de um prédio que não era o nosso.

Jane Jacobs, falando do que traz segurança em ruas adequadas para receber desconhecidos, traz como condição primeira a “nítida separação entre o espaço público e o espaço privado”. É essa definição clara que vai distinguir o desconhecido que nos acende um alerta e precisa se explicar daquele que não precisa.

O pilotis está naquela categoria de espaço semi-público ou semi-privado, que, no quesito apropriação e segurança, traz uma série de conflitos e tensões.

“Quem é que varre? É o gari? Ou é o funcionário da limpeza do prédio?”, “E a iluminação? É a do poste? Ou é o condomínio que providencia e paga?”, perguntava sempre minha colega Giselle Chalub, maravilhosa arquiteta, com quem dei aula por alguns anos. As respostas são óbvias.

O pilotis não é um espaço público. No caso do Plano Piloto de Brasília, é um espaço semi-público ou semi-privado que – por força das leis do tombamento – deve (ou deveria) franquear passagem e permanência a qualquer cidadão. Sem elas, provavelmente, eles já estariam cercados há muito tempo, o que seria uma pena.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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