Dos desconhecidos

9 de junho de 2023

Ser desconhecido numa cidade — inclusive na nossa — era para ser algo confortável.

Aos 45 anos, morando em Nova York, a escritora americana Jane Jacobs (1916 – 2006) lançou “Morte e Vida de Grandes Cidades”. Em sua introdução, ela deixa claro que escreverá “sobre o funcionamento das cidades na prática, porque essa é a única maneira de saber que princípios de planejamento e que iniciativas de reurbanização conseguem promover a vitalidade socioeconômica nas cidades e quais práticas e princípios inviabilizam”, e cumpre magistralmente o prometido.

Se você tiver dinheiro para investir em um único livro sobre cidades e espaços públicos, escolha esse. Tenha-o na estante, leia-o em sequência ou em capítulos, marque passagens que lhe interessam. Ele é imperdível, e sua leitura é deliciosa e estimulante. É daquelas iniciativas maravilhosas de popularização da ciência, de provocação do nosso senso comum, de convite a olhar atentamente para as coisas, as pessoas, os lugares e de nos dar ferramentas para questionar tudo.

Sem dúvida, o conceito mais propalado desse livro é o de “olhos para a rua”, que está vinculado à ideia de segurança. No capítulo 2, “Os usos das calçadas: segurança”, Jacobs discorre sobre as características dos espaços públicos que fazem com que as pessoas se sintam seguras, sem medo de sofrer violência. A principal ideia que ela apresenta é a necessidade de se ter desconhecidos circulando nos lugares, para que nós nos sintamos seguros ao utilizá-los.

Isso me surpreendeu. Desconhecidos? Como assim?

Ela explica que, numa cidade, a gente tem muito mais desconhecidos do que conhecidos. E não apenas nas áreas mais movimentadas e centrais: a gente tem muitos desconhecidos onde moramos. Não dá pra conhecer todo mundo, nem que a gente esteja na política. Então, o importante é que, na presença inevitável dos desconhecidos, não nos sintamos “ameaçados por eles de antemão”.

Fica mais fácil entender esse conceito quando nos damos conta de que os desconhecidos também somos nós.

Somos nós, quando não estamos frequentando aqueles lugares do nosso cotidiano. Quando nos vemos numa parte da cidade onde tem a única pessoa que aparentemente conserta aquela coisa que precisamos consertar. Quando vamos para uma festa num bairro onde não estivemos antes. Quando nos mudamos, quando mudamos de escola, de trabalho. Quando caminhamos por uma calçada onde nunca tínhamos pisado — ou sequer sabido que existia.

Como gostaríamos de ser vistos, ao sermos percebidos por aqueles que — esses sim — estão nos lugares do seu cotidiano? Com desconfiança? Com medo? Mas a gente não veio fazer nada de errado, a gente só veio consertar/festejar/conhecer/se consultar/comprar/entregar/resolver uma pendência/passear/sei lá o que mais. A gente não é do mal, só está usando uma parte diferente da cidade.

É muito melhor não chamar a atenção, ser mais uma pessoa no meio das outras, olhada com indiferença. A gente sente que não está incomodando, nem despertando medo em ninguém, e isso é confortável. O mesmo deveria acontecer com as pessoas que vão às partes da cidade onde nós mais frequentamos.

E o que o desenho dos lugares tem a ver com isso? Muito.

Cidades com sistema viário conectado — ou seja, com mais permeabilidades que barreiras — oferecem mais oportunidades de trajeto. Assim, hoje eu posso usar esse caminho, mas há outros, com distância e tempo de deslocamento semelhantes, que eu posso escolher amanhã, ou depois. Cidades com usos bem distribuídos e misturados oferecem razões para que eu utilize vários de seus lugares. Essas características me fazem passar por locais diferentes, onde eu sou desconhecida.

Pessoas que frequentam, moram, estudam ou trabalham em ruas que são passagem para outro lugar e/ou que têm oferta variada de atividades já estão acostumadas a ver gente desconhecida passando e permanecendo. E está tudo bem.

Cidades com muitas ruas sem saída, condomínios fechados, quadras enormes oferecem menos oportunidades de trajeto. Assim, nós as exploramos menos. Some-se a isso bairros homogêneos, com uma única forma de moradia, e sem mistura de usos, e você acaba propiciando a criação de territórios, onde os desconhecidos podem ser percebidos como intrusos.

Pessoas que frequentam, moram, estudam ou trabalham em locais assim estão menos acostumadas com os desconhecidos. Isso é ruim para todo mundo.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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