Pateta comprou um carro

1 de agosto de 2025

Não há carro sem vaga.

Pateta comprou um carro. Assim que recebeu a informação, a cidade imediatamente se organizou para melhor servi-lo: concedeu-lhe uma vaga gratuita. Uma vaga para ele usar nos espaços públicos, sempre e quando quisesse, pelo tempo que quisesse. Uma vaga pessoal e intransferível. No mesmo dia, ele recebeu uma notificação da prefeitura, dando-lhe os parabéns e enviando-lhe o certificado de vaga livre.

Pateta ficou muito contente. Era exatamente isso que ele esperava da cidade, apoio total à sua decisão de deixar essa vida horrorosa de pedestre. “Afinal”, pensou, “não há carro sem vaga. Se estou em A e vou para B, é preciso levar meu carro, que está estacionado em A, para estacioná-lo em B. Assim, já que não vou mais precisar da vaga em A, nada mais lógico que levá-la comigo para B. Simples!”

Pateta começou a experimentar sua nova vida. Ia tomar café de manhã, e lá estava ela – a sua vaga gratuita – em frente à padaria. Ia trabalhar, e sua vaga já lhe estava esperando em frente ao seu local de trabalho. À exceção de uma pequena pausa para o almoço – quando ele tirava o carro da vaga para parar em frente ao self-service e depois retornar –, ele o deixava lá por toda a sua jornada de trabalho. No fim do expediente, ele ia treinar e… olha ela lá! Sua vaga, em frente à academia.

Pateta estava encantado. Jogo de futebol, show, praia, comércio de rua no centro, escola das crianças, qualquer destino o recebia de braços abertos com sua vaga disponível e bem localizada. Era só chegar. Ele achava muito justo. “Afinal, o governo não precisa mais gastar comigo para me oferecer mobilidade nesse precário sistema de transporte público. Eu pago IPVA. Eu pago gasolina.“

(Havia apenas um único lugar onde Pateta tinha que deixar sua vaga de estimação para trás e pagar por uma vaga genérica, que podia inclusive não estar bem localizada: o shopping center. Mas ele entendia. Mesmo que ele fosse lá para consumir, Pateta acreditava que pagar pelo estacionamento era uma contrapartida justa, pois está parando dentro de um terreno privado. “Afinal, se eu quero estar lá, tenho que aceitar as condições de estacionamento!”)

Um belo dia, Pateta viu uma notificação em seu aplicativo. A prefeitura informava que estava tendo dificuldades em honrar seu compromisso com a vaga livre. Várias pessoas tinham comprado carros e ganhado suas vagas, mas o espaço público estava ficando escasso. As calçadas já tinham sido reduzidas ao mínimo, a maioria das praças e canteiros já tinham sido eliminados, várias árvores já tinham sido derrubadas. Infelizmente, não estava dando conta da demanda. Esclarecia que, a partir daquele dia, não só os carros não iam mais ganhar suas vagas, como os que já as tinham iam perdê-las. E que as vagas seriam de quem as pegasse primeiro, que nem sempre estariam nos melhores lugares, e que não seriam mais gratuitas.

Pateta, que até então continuava contente – mesmo que viesse percebendo, de uns tempos para cá, que sua vaga já não estava mais tão bem localizada, e que tinha que rodar um pouco até encontrá-la – sentiu-se traído e ficou fora de si. Revoltado, foi protestar em frente ao prédio da prefeitura, mas provavelmente todos os donos de carros da cidade tiveram a mesma ideia. Era impossível chegar, circular, estacionar.

Pela primeira vez, não encontrou vaga. Deu meia volta e foi chorar suas mágoas num shopping center.

Se você não conhece o desenho animado da Disney dos anos 1950 “Motor Mania“, que mostra o Pateta no trânsito, veja aqui.

Recomendo demais a leitura do artigo de Cristiano Scarpelli: Qual o espaço ocupado pelos carros?

Este texto é dedicado à Bruna Kronenberger.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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