O que se antecipa e o que se confirma

29 de março de 2024

Uma pitada de lógica social do espaço

A lógica social do espaço (The social logic of space, lançado em 1984, não traduzido para o português), de Bill Hillier e Julienne Hanson, é um livro fundamental para o estudo dos espaços públicos. Ele não é tão fácil de ler quanto o Morte e Vida de Grandes Cidades, da Jane Jacobs, mas… persevere! Seus achados são espetaculares.

Bill e Julienne dizem que a ordem espacial deixa claras as diferenças culturais entre um grupo social e outro. Isso porque o desenho dos lugares tem implicações no funcionamento das sociedades, e elas tendem a desenhar os lugares de acordo com suas práticas. Ele evidencia uma ordem, um posicionamento, uma escolha.

Uma das minhas frases preferidas do livro é: “Lemos o espaço e antecipamos um estilo de vida”.

No primeiro texto desta coluna falei como eu gostava de conhecer as casas das pessoas e imaginar como eram suas vidas domésticas. Uma simples disposição de mobiliário, a ausência ou presença de certos eletrodomésticos já davam pistas de como funcionava aquela família. As pessoas não precisavam estar desempenhando seus papéis naquele momento. O lugar em si, estruturado como estava, era suficiente.

Imagine uma mesa onde a família real (qualquer uma) faz suas refeições. Acredito que você não tenha imaginado uma mesa redonda, mas, sim, uma longa mesa retangular, dessas em que uma cabeceira está bem distante da outra. Afinal, cabeceiras são lugares distintivos, nas quais pessoas consideradas mais importantes que as demais (rainhas, por exemplo) podem se posicionar para ficar em evidência. Uma mesa retangular antecipa mais hierarquia e relação de poder que uma mesa redonda.

Imagine uma empresa cujo edifício-sede se coloca no nível do solo, integrando sua entrada ao espaço público circundante, para que as pessoas o possam acessar sem nenhum tipo de dificuldades. Agora imagine uma empresa cujo edifício-sede se coloca sobre uma grande escadaria, isolando-se do fluxo dos pedestres. O que a relação público/privado desses dois edifícios antecipa sobre as empresas que os adotaram e a relação que elas têm com seus clientes? Um edifício que se coloca sobre um pedestal antecipa dar mais importância a si que a quem ele serve.

Veja bem, isso tudo é uma antecipação. Pode não ocorrer. Lembre-se de que a arquitetura é um campo de possibilidades. Vai que a família real é integradora, e coloca os convidados na cabeceira. Vai que a empresa do pedestal tem um corpo de funcionários maravilhoso e bem treinado, que trata os clientes a pão-de-ló. Tudo pode acontecer, e acontecer apesar de a ordem espacial estar antecipando outra coisa. Mas a vasta evidência empírica do livro, e de inúmeros estudos que vieram beber no que chamamos de Sintaxe Espacial, tende a confirmar nossas antecipações.

No âmbito urbano, isso fica muito mais evidente. Vejamos.

Imagine, por fim, uma cidade que tem, em seu centro, próximas aos empregos, áreas gigantescas de estacionamentos de superfície gratuitos, enquanto empurra para a periferia distante e monofuncional a oferta de moradia; e imagine outra, que aproveita cada centímetro do seu solo urbanizado para trazer as pessoas para morarem mais perto dos empregos, elimina os bolsões de estacionamento (e quaisquer vagas de estacionamento gratuitas) e coloca em seu lugar edifícios de uso misto e lindos espaços públicos. O que decisões de uso e ocupação do solo antecipam sobre o que é prioritário para os governantes – e grande parte da população influente – dessas cidades? Que visões de mundo, de cidade e de cidadão estão subjacentes, numa e noutra?


Vou deixar você adivinhar essa. 

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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