Metas nacionais versus planos locais: o desafio da universalização do saneamento básico

26 de setembro de 2023

O saneamento básico, fundamental para a saúde pública e o bem-estar da população, é uma das áreas prioritárias em qualquer política de desenvolvimento urbano. No Brasil, o debate sobre a eficácia e aplicabilidade das metas de saneamento ganhou destaque com a introdução do novo marco legal que estabeleceu metas nacionais ambiciosas.

Essas metas, ao serem comparadas com as previamente definidas pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB), geram discussões significativas sobre sua viabilidade e pertinência. A questão central gira em torno da universalização dos serviços e se uma abordagem uniforme em nível nacional pode efetivamente atender às variadas realidades regionais e municipais do vasto território brasileiro.

Uma das novidades do novo marco legal do saneamento básico que mais chamou a atenção da opinião pública foi o estabelecimento de metas nacionais de universalização. Na Lei, introduziram-se metas de atendimento de 99% da população com água potável e 90% com coleta e tratamento de esgotos até o ano de 2033. Não se trata de uma meta para o país, mas para cada contrato de prestação dos serviços. Estão previstas também metas de não intermitência e redução de perdas no abastecimento de água e melhoria nos processos de tratamento, mas nesse caso não foram fixados valores em lei. 

Não se deve confundir essas metas com as do Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB), que dizem respeito à política federal de um modo geral. O Plansab estabelece metas para oito indicadores de abastecimento de água e seis para o esgotamento sanitário, além de oito para manejo de resíduos sólidos, duas para manejo de águas pluviais e cinco sobre a gestão dos serviços, desagregadas por região do país.

Cada indicador tem uma metodologia definida de apuração. Dessas 29 metas, três se encontram desagregadas por estado: as de cobertura dos serviços de água (A1), esgotamento (E1) e resíduos sólidos (R1). Todas as metas foram estabelecidas mediante consulta a 80 especialistas (Método Delphi), quanto a suas expectativas no horizonte do plano (2033). As metas do Plansab orientam a política federal e seu descumprimento não acarreta nenhuma punição. 

Já as metas do marco legal se aplicam diretamente a cada contrato e seu não cumprimento acarreta caducidade, ou seja, extinção do contrato. Além disso, a Lei condicionou a validade dos contratos existentes e futuros à comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores para cumprir as metas, o que foi regulamentado por decreto. A metodologia de apuração dos indicadores será definida pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, por meio de norma de referência. 

Quanto aos valores fixados, não há indicação de qualquer metodologia que tenha sido empregada. Apesar disso, pode-se considerar que a meta de 99% de cobertura de água assemelha-se à meta do Plansab de 99% para o indicador A1. Considerando-se os valores desagregados, no entanto, verifica-se que a meta é de 94% para a Região Norte, 97% para o Nordeste e 100% para as demais regiões. 

Não existe um indicador no Plansab para a coleta e tratamento de esgoto. Há indicadores separados para coleta (E1) e para tratamento do esgoto coletado (E4). Para se criar um indicador unificado é preciso multiplicar esses indicadores, o que resulta em metas de 86% para o Brasil, 82% para o Norte, 79% para o Nordeste, 86% para o Sudeste, 93% para o Sul e 81% para o Centro-Oeste, muito distantes da meta de 90% do marco legal. 

O Plansab não estabelece metas para cada município, mas se o fizesse, certamente admitiria números ainda menores para aqueles que se encontram em situação mais crítica.

Considerando-se a finalidade das metas (estabelecer obrigações para os prestadores dos serviços), entretanto, sua fixação em lei federal é despropositada. A Lei Nacional do Saneamento Básico prevê, desde 2007, que os contratos de saneamento contenham metas compatíveis com planos municipais ou regionais, elaborados a partir de um diagnóstico da situação e das fontes de financiamento disponíveis. Esses planos deverão ser compatibilizados com outros documentos setoriais, como o plano diretor, o plano de bacia hidrográfica e a carta geotécnica de aptidão à urbanização. 

A necessidade de planejamento local fica clara quando se leva em consideração as diversas situações em que há assentamentos sem atendimento. O próprio marco legal proíbe o atendimento de núcleos informais não consolidados ou situados em área de risco. 

A Lei da Regularização Fundiária, por sua vez, define as situações em que os núcleos informais consolidados podem ser regularizados. Nas áreas de risco e nas unidades de conservação de proteção integral, a regularização não é admitida.

Nas áreas de proteção permanente, unidades de conservação de uso sustentável e áreas de proteção de mananciais, a regularização é possível, mas apenas mediante elaboração de estudo técnico que demonstre a melhoria das condições ambientais existentes.

Cabe ao município decidir quais núcleos informais consolidados serão regularizados e aprovar o respectivo projeto urbanístico, integrando o saneamento como um de seus elementos. A universalização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário não pode ser tratada, portanto, como uma política independente, desvinculada dos componentes de resíduos sólidos e de manejo de águas pluviais e das políticas de ordenamento territorial, defesa civil, meio ambiente e regularização fundiária.

Cabe aos planos locais de saneamento básico, levando em consideração todos esses elementos, estabelecer as metas de universalização. Substituir isso por metas nacionais fixadas em lei é um caminho que tem tudo para dar errado.

Texto de autoria de Victor Carvalho Pinto — Coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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