De acordo com os dados publicados pelo IBGE em 2022, mais de 85% da população brasileira vive em centros urbanos. Esse rápido crescimento da população residente nas cidades, ocorrido notadamente na segunda metade do último século, não ocorreu de forma organizada. A falta de planejamento tornou a vida da maioria da população caótica em vários aspectos, com destaque para a mobilidade urbana.
Os municípios, preocupados com a qualidade de vida do cidadão e incapazes de fazer frente à maior parte dos problemas gerados pelo espraiamento e crescimento desordenado de seu território, começaram, por meio de seus Planos Diretores e leis específicas, a estruturar um conjunto de regras com o intuito de regular a implantação de novos empreendimentos imobiliários. O ponto que se pretende discutir aqui é: qual seria o equilíbrio entre o excesso regulatório, a burocratização em demasia e o estímulo ao desenvolvimento sustentável e aos investimentos nessas cidades?
Considerando que o objetivo da regulação é evitar desequilíbrios, garantindo espaços para equipamentos públicos, habitação de interesse social, preservação ambiental e de patrimônio histórico, reforça-se a tese de que existe um excesso na regulação dos espaços restantes para produção. Leis antiquadas impõem condições que não atendem, por exemplo, a necessidade de espaços com múltiplos usos e tipologias, o que reduziria enormemente a necessidade do uso de transporte motorizado, os tempos de deslocamento e a emissão de gases de efeito estufa. É comum verificar prefeituras que ainda exigem, em suas Leis de Uso e Ocupação do Solo, que se implantem viários com leito carroçável largo, em detrimento de calçadas, ciclovias e arborização viária.
Não se pretende, aqui, descredenciar a atribuição constitucional do poder público em legislar. Vale inclusive destacar que a sociedade civil vem se apoiando no discurso da incapacidade da gestão pública na regulação e fiscalização das cidades para questionar diversos pontos nestas discussões, mas esquece de olhar para si como parte deste processo.
O processo participativo, por meio das audiências públicas, regra geral, fica refém de grupos organizados, que representam interesses legítimos, como habitação social, meio ambiente, mobilidade, mas também, muitas vezes, promovem a defesa de “privilégios espaciais” que não têm aderência aos conceitos de cidade compacta, plural, com diversas centralidades, uso diversificado e menor tempo nos deslocamentos.
O que se observa neste processo de regulação é que os Poderes Executivo e Legislativo não convergem, na maioria das vezes, para essa direção. A legislação ambiental talvez seja um bom exemplo disso. Neste campo, provavelmente temos a maior insegurança jurídica nos processos de licenciamento de novos projetos, com exigibilidades legais muitas vezes subjetivas ou conflitantes.
A complexidade de leis que tratam deste assunto; a sobreposição das legislações municipais, estaduais e federais; os diferentes entendimentos entre as diversas disciplinas, concessionárias e técnicos responsáveis pelo licenciamento nas secretarias; o arcabouço legal de leis, resoluções e decretos; e ainda a subjetividade existente em muitas delas quando aplicadas no território, vêm trazendo desestímulo ao investimento e fazendo com que a produção de cidades no Brasil esteja sempre atrás do que os urbanistas discutem como o modelo de cidade do futuro. Em alguns casos, a falta dessa ocupação ordenada pelo mercado formal, dentro das regras estabelecidas, gera ocupações irregulares, com danos ambientais irreparáveis, como ocorreu nas áreas de mananciais da região metropolitana de São Paulo.
É passada a hora de o conjunto de leis, decretos e portarias passarem por um processo de consolidação legislativa, com análise objetiva de pontos de conflito, sob pena de cada vez mais termos dificuldades para construir cidades mais inclusivas, mais sustentáveis e menos desiguais.
Texto de Luciane M. Virgilio, arquiteta urbanista, Mestre em Engenharia Civil e Urbana pela Escola Politécnica da USP. Colaboradora do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper. Atua no desenvolvimento urbano, especificamente na área de parcelamento de solo. Possui mais de 40 milhões m2 em projetos desenvolvidos e licenciados ou em fase de licenciamento.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.