Cociência

26 de maio de 2023

Estar fora e ver o que acontece dentro é tão interessante quanto estar dentro e observar o movimento de fora.

Década de 90. Estou no primeiro andar de um prédio do Setor Bancário Sul, Brasília. São umas sete da noite. Da cadeira onde estou deitada, vejo a dentista ir até à janela, enquanto espera a anestesia que me aplicou fazer efeito. Olha para o térreo do prédio, onde tem um restaurante que está começando a ficar conhecido, e balança a cabeça: “Olha lá o Calaf, tomando uma cervejinha. E eu aqui, trabalhando”. De repente, ela acena e troca algumas palavras com ele, que deve ter olhado para cima. “Eita, será que ele me escutou?”. E ri.

2015. Estou em Porto Alegre. Meu amigo Reinaldo, que mora no centro, me conduz pela rua General Auto. É uma rua de prédios sem recuos laterais ou frontais, e fico tentada a olhar pelas janelas que têm altura perfeita para o transeunte bisbilhotar o que se passa no seu interior. Começamos a ouvir uns miados. A clínica veterinária colocou na janela uma gaiola com 4 gatinhos e um cartaz: “Doação gatinhos. Favor não tocar porque eles podem adoecer. Obrigada!”

Antes da pandemia. Dentro de uma loja, numa rua comercial local da Asa Norte, Brasília, espero a moça trazer um sapato do meu número e ouço duas vendedoras conversarem, olhando pro motoboy que parou na rua, perto da farmácia: “É ele, sim! Olha, ele vai tirar o capacete.” Frases ininteligíveis, risinhos, suspiros. “Disfarça, disfarça! Ele tá olhando pra cá!”

2023. Em Lima, na Calle Ernesto Diez Canseco, me chama a atenção um centro comercial que não tem loja no nível da calçada: você tem que descer meio nível para ir às lojas do pavimento semienterrado, ou tem que subir meio nível para ir às lojas do pavimento elevado. Não é acessível, mas quem passa na calçada acaba vendo duas vitrines no lugar de uma, o que é interessante. Entro no salão de beleza que fica embaixo só para ver o que as manicures veem. “Não é estranho ficar vendo as pessoas passando lá em cima?”, pergunto. “Que nada, a gente reconhece as clientes pelas pernas!”

Os espaços públicos são definidos por fronteiras — os limites dos edifícios que os configuram — e elas podem ser opacas, translúcidas, transparentes. Uma pessoa que esteja no interior de uma edificação e uma pessoa que esteja na calçada imediatamente fora dela não saberão da existência uma da outra, a menos que as fronteiras permitam sua mútua visibilidade.

A gente chama essa mútua visibilidade de cociência.

A cociência é um dos ingredientes fundamentais para espaços públicos que sejam interessantes e seguros. Fronteiras opacas no térreo ou em pavimentos superiores a impedem. Fachadas espelhadas também.

Cada um dos episódios relatados mostra bom desempenho das fronteiras quanto à cociência. A janela aberta permitiu não só a visibilidade mútua, mas a interação entre a dentista e o Calaf. O fato de ela estar no primeiro andar não foi impeditivo. Pavimentos superiores, especialmente os mais próximos ao térreo, com janelas transparentes, sacadas, varandas, são ótimos para isso.

A janela com grade, ao nível dos olhos, fronteira entre a calçada e a clínica veterinária, indica que há alguém no interior da edificação atento ao movimento da rua, e que bastaria um chamado para sermos atendidos. O movimento e o som dos gatinhos chamam nossa atenção e tornam especial aquele trecho do trajeto.

Vitrines de loja trazem grande visibilidade interior/exterior, pela necessidade de expor produtos e serviços que possam interessar aos passantes. Ao mesmo tempo, permitem a quem está dentro acompanhar a cena exterior, sair para prestar alguma ajuda, flertar.

Querer saber o que está acontecendo dentro de um lugar é uma curiosidade tão legítima quanto querer saber o que está acontecendo fora de um lugar. Reparar nas pessoas, interessar-se por elas é da nossa natureza. Fronteiras transparentes entre o público e o privado não só ampliam os atrativos de um espaço público e favorecem a vigilância informal, elas também ajudam a realizar um dos desejos mais profundos do ser humano: saber da vida dos outros.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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