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16 de março de 2023

Essa semana tivemos o anúncio do arquiteto David Chipperfield como laureado do ano de 2023 do prêmio Pritzker, o “Oscar da Arquitetura” para o conjunto da obra.

Não é pouca coisa, e uma atuação de mais de quatro décadas com uma arquitetura ora de criação, ora de revitalização, mostram sua preocupação e engajamento com uma arquitetura cívica.

Eu, pessoalmente, admiro a abordagem sutil de Sir David Chipperfield em obras de grande impacto, sem jamais desbordar numa arquitetura de espetáculo, daquelas que gritam e clamam por atenção a todo instante.

Quem já esteve conversando com um grande mestre ou uma pessoa pela qual tenha reverência, sabe que o silêncio pode ter presença e ocupar a sala. Uma arquitetura que não precisa gritar para ter uma presença contundente está determinada a permanecer, firme como um ombro de pai.

E foi pensando no significado de arquitetura cívica no cotidiano que acordei com uma ideia fixa para uma experiência meio fora do comum.

Fiquei imaginando como seria andar pela cidade durante um dia inteiro com um óculos, cujas lentes tivessem a metade tampada por uma tira de fita crepe.

Tampar a metade de cima é perigoso, porque a gente só vê o chão, e não vê mais nada; mas se for a metade de baixo, podemos ver o que vem à frente, perto e longe. Dá para atravessar a rua em segurança para andar sem parecer um maluco, sem trombar em todo mundo.

Óculos sem grau, fita crepe da metade para baixo, roupa de andar, tênis confortáveis, música e fones de ouvido, protetor solar e chapéu.

Belo Horizonte é uma cidade agradável, muito agradável para andar. Zero monotonia, subidas e descidas, umas ruas meio engraçadas, restos de caminhos asfaltados, estranhas em uma cidade planejada, toda “certinha”.

Ruins para a empreitada são os passeios, cada um de um jeito, sempre quebrados, esburacados, geralmente feios, com materiais impróprios e frequentemente exagerados, evidenciando uma questão cultural dos mineiros com a objetividade, a praticidade e as prioridades.

Tem gente que acredita que se possa medir o “estágio civilizatório” pela qualidade dos passeios (e da andabilidade) de cada cidade. Eu, tristemente, preciso concordar.

E assim foi o “projeto”: flanando por Belo Horizonte com a metade de baixo da vista bloqueada, e o olhar para frente e para cima.

Teve coisa boa, como a poluição visual e a sujeira geral que desaparecem como se por mágica. Como por mágica desaparecem, também, aquelas floreiras nos térreos e aqueles jardinzinhos chinfrins, sem qualquer cuidado, sempre sujos com sacolas plásticas e restos de papel, como se fossem lixeiras públicas.

Como bônus, evaporam da vista, ainda, aqueles jardins obrigatórios e sem vontade de ser jardim dos afastamentos obrigatórios (tema do meu último texto).

Olhando para frente e para cima, os — muitos — prédios de arquitetura sofrível continuam iguais, ora gritando falta de estilo, falta de harmonia e de vontade, ora amalgamados numa maçaroca indistinta que enfeia a paisagem.

Mas o estranho é que, se você abstrai da corrida de obstáculos que são os passeios, e daquela feiura a estamos todos acostumados, não teve uma parte realmente ruim; talvez mais uma sensação ruim, um incômodo.

Imagine explicar a gravidade antes de Newton. A coisa está lá e você sabe que existe mas, por algum daqueles insondáveis mistérios da natureza, não consegue compreender e, por não compreender, não conhece explicar.

Põe óculos, tira óculos, e era uma bobagem, um detalhe, uma espécie de doença da qual as nossas cidades parecem não querer se curar: quase todos os prédios de Belo Horizonte tem muros e gradis (ou, de forma bastante criativa, variações de muros e gradis para quase todos os gostos).

Se quase todos têm muros e gradis que os isolam do passeio e do pedestre, os óculos com a fita crepe só fizeram com que os muros e gradis deixassem de ser vistos. A gente já não via os térreos dos prédios; eles já estavam escondidos e fechados para o pedestre pelos seus muros.

E aquela sensação ruim, aquele incômodo, são a percepção que, na medida em que os prédios estão, em sua maioria, isolados, o pedestre se dê conta de estar num verdadeiro labirinto com paredes altas, sem portas de saída, sem amparo, sem segurança.

Ao invés de caminhadas, um andar apressado e ansioso, sem qualquer refresco visual no percurso, com mais muros e barreiras do que pontos permeáveis, sem nada que atraia o olhar além dos sinais de exclusão e das evidências do quão inseguro possa ser o bairro (e é?).

Os prédios murados se tornaram, cada um, microcosmos com regras próprias e uma sensação de segurança artificial; no final do dia, é difícil dizer quem está preso do lado de dentro, quem está preso do lado de fora e quem está livre.

Talvez, numa cidade em que todos os prédios sejam murados, estejamos ao final, todos presos e em regime de isolamento controlado.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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