Uma URV para os Centros Urbanos

12 de junho de 2023

Os desafios dos centros urbanos são inúmeros, mas o maior problema são os diagnósticos equivocados que levam a soluções ineficientes ou insustentáveis.

Ao longo do tempo, propositalmente, a função residencial foi retirada dos nossos centros históricos para que pudessem se converter em centralidades de negócios, por influência do modelo norte-americano no pós-guerra.

Hoje, não conseguirão mais sobreviver como centros econômicos dada a atomização criada pelo trabalho remoto, a eficiência de serviços de entregas e a consequente mudança nos padrões de deslocamento casa-trabalho.

Se este quadro é ruim, a visão sobre o uso do solo das cidades brasileiras não tem mudado desde o Estatuto das Cidades de 2001.

Estimula-se o consumo de solos de baixíssima conectividade urbana pelo mercado imobiliário, ou ele pede por isso, dada a lucratividade deste tipo de desenvolvimento, por meio de distribuição ampla e homogênea de índices de adensamento.

E os medíocres aproveitamentos de terrenos centrais não conseguem sequer fazer cócegas no desejo dos incorporadores por grandes terrenos nas bordas urbanas.

Recentemente, empreendimentos em São Paulo e no Rio de Janeiro, o Parque Global e o Oceana Golf, respectivamente, foram lançados com enorme sucesso de vendas. Ou seja, a demanda por produtos de alto valor está na periferia e não em áreas bem localizadas.

Essa tendência empurra a urbanidade para fora da cidade, mesmo que tais empreendimentos ainda sejam caracterizados pelo anti-urbanismo. O desejo está lá fora.

O Parque Global dista 14 km da Praça da República, um magnífico exemplar de bom urbanismo. O Oceana Golf está a 26 km da Praça Tiradentes, outro ápice da inteligência urbana brasileira.

Ambos exemplos centrais estão degradados, mal cuidados e são marcas vergonhosas da incompetência municipal em cuidar de lugares emblemáticos e estratégicos.

Comparando-se os raios de 14 e 26 km em Buenos Aires, Nova York, Belo Horizonte, Dubai, ou Lisboa, o que se constata é que estamos colocando o valor urbano em eterno deslocamento, numa parceria disfuncional entre os muito ricos e os muito pobres.

Achar ilhas de isolamento nas periferias virou a prática do mercado de alto luxo, assim como buscar terras devolutas é o modus operandi da favelização no Brasil. Entre as comparações, a cidade do mundo árabe é a que mais se assemelha espacialmente ao nosso padrão territorial, mas sem a mesma riqueza per capita.

Ninguém se lembra da mais da URV, a Unidade Real de Valor, que indexou o papel monetário podre, o Cruzeiro Real, em um moeda virtual, cuja base diária de conversão de preços e valores viria a permitir o surgimento do Real como moeda forte, fundada em medidas fiscais e administrativas que asseguravam tanto a materialidade do poder de compra como o símbolo.

Os centros urbanos não têm mais valor. Por isso não ofertam oportunidades habitacionais mais. Se houvesse demanda por eles, haveria alguma resposta do mercado. Logo há um impasse.

As políticas urbanas são apenas pensadas pela ótica do Estado como garantidor da habitabilidade, o que leva a raríssima continuidade de soluções, pioram a reputação e a descrença coletiva na transformação.

Os centros históricos precisam de uma regeneração radical de valor.

O caminho a ser seguido é que, ao mesmo tempo que reformas estruturais sejam feitas — conservação rigorosa do espaço público, segurança, ordenamento, atratividade —, é fundamental que a incorporação e o retrofit para fins residenciais sejam incentivados tanto com índices ousados favoráveis, para competir melhor com outros solos, assim como celeridade nos licenciamentos. Fundamental oferecer ao mercado imobiliário transferências de direito de construir, operações interligadas, estímulos fiscais, para que aumentem a oferta, e exigir oferta para rendas estratégicas.

Acertar no público alvo é crítico. A classe média, a média baixa, precisa ir morar nos centros para que através da sua demanda surjam novos empregos que irão permitir a fixação das classes mais vulneráveis, estas sim com ofertas de moradia fruto de políticas públicas.

Os centros precisam desesperadamente de planos que criem ciclos virtuosos, menos dependentes de atuação estatal no médio prazo, e capacidade de reconstruir valor urbano no longo tempo.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

Compartilhar:

Arquiteto e urbanista dedicado à reciclagem das cidades brasileiras. Atuou como Secretário de Planejamento Urbano do Rio de Janeiro e presidente do Instituto Pereira Passos e do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade. É um Harvard GSD Loeb Fellow. ([email protected])
VER MAIS COLUNAS